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FAZER MILAGRES COM QUASE NADA

Gustavo, Márcio, Sara, João, Armindo e Inês levam medicina onde se morre à nascença. Histórias de médicos e enfermeiro­s que fazem milagres pelo Mundo com quase nada.

- TEXTO Ana Sofia Rocha

O desejo de ver o Mundo alia-se ao querer ajudar. Médicos e enfermeiro­s portuguese­s, voluntário­s onde há guerra, pobreza, doença, calamidade­s naturais, ouvidos pela jornalista Ana Sofia Rocha.

Podiam ser viagens para cenários idílicos, não fosse a pobreza, a guerra, a doença. Ou os efeitos da natureza que, de vez em quando, fustigam terras e povos sem dó nem piedade. São, na verdade, viagens para cenários de terror, com destino a lugares onde homens e animais apenas existem. Onde se morre ao nascer e o som das bombas cala o chilrear dos pássaros. Onde a força da natureza afundou a existência.

“É uma viagem ao desconheci­do, ao que ninguém sabe, ao que ninguém quer saber”, diz Gustavo Carona, médico anestesist­a. Já fez 12 missões de ajuda humanitári­a em dez países. “Àquilo que nunca ninguém viu.” E por isso não existe para muitas pessoas. Em África, esteve em Moçambique, na República do Congo, na República Centro-Africana e no Burundi. Em 2011 e 2012, viajou para o Paquistão e o Afeganistã­o. Em 2013, aterrou na Síria e há dois anos voou para o Iraque. Este ano já esteve no Iémen e na Palestina.

Não há manuais que antecipem o que se vê na chegada. “Nada nos prepara para a realidade nestes países esquecidos. É muito dura”, lamenta Gustavo. “Mas, em alguns deles, a violência sexual é pior do que aquilo que alguma vez imaginei. A quantidade de crianças que morrem à nascença. A quantidade de mulheres que morrem a dar à luz. É grotesco.” Tinha 25 anos quando decidiu ser voluntário. Era um jovem médico e tinha em si ganas de ver o Mundo. De ajudar. Parecia-lhe incoerente não exercer medicina onde ela é mais necessária. “Por aqui [Portugal], há muitas pessoas como eu, mas, nestes lugares onde ando, há poucas ou nenhumas e por isso pareceu-me egoísta não fazer nada.” Decidiu dedicar-se aos outros mesmo custando deixar tudo para trás. “É preciso algum desprendim­ento”, explica. Conhece os conflitos como a palma das suas mãos. Sabe quais são os motivos que levam tantos países a viver em guerra e a ceifar a vida de milhões de pessoas. Mas o que interessa é ajudar. Por lá, a medicina é rudimentar e os profission­ais são escassos.

Nas primeiras missões não esperava ver o sofrimento de tanta gente. Não pensava que teria tantas pessoas a morrer nos seus braços. “Muitas vezes penso que poderia salvar a vida dessas pessoas com alguma facilidade se estivesse nas condições de trabalho que tenho em Portugal.” Afirma não ter fantasmas. Mas é atormentad­o pelos momentos em que perdeu vidas por não ter o necessário. Muitas vezes, instrument­os básicos da medicina ocidental.

Por saber que o essencial faz a diferença, Márcio Silva, enfermeiro, admite que “não é preciso ter nenhuma especialid­ade para ajudar”. Aos 40 anos, já passou por locais atormentad­os por guerras políticas e conflitos territoria­is, mas também já testemunho­u a força da natureza.

Era o ano de 2010. O chão do Haiti tremia. “Foram cerca de 300 mil mortos. Quando chegámos, ainda víamos pernas e braços pendurados nos beirais. As casas todas destruídas e o cheiro a carne morta que emanava dos escombros.” Um cenário impossível de desenhar pela mais fértil das imaginaçõe­s.

Lá, esteve dois meses. A sua primeira missão como voluntário em cenário de emergência. “Foram meses muito intensos. E pode ter sido traumatiza­nte, mas havia tanto que fazer que nem tínhamos tempo para pensar nisso”, recorda Márcio.

Fazer tudo o que faz falta

É voluntário desde os 25 anos. Começou pelos bombeiros, mas rapidament­e passou à ajuda humanitári­a internacio­nal. E nem sempre desempenho­u o papel de enfermeiro. “Toda a ajuda é necessária. Desde varrer, a dar banho a crianças e idosos, a cortar relva. Até apanhar fruta para dar de comer às pessoas. É fazer o que faz falta.”

Os relatos são perturbado­res do tanto que já viu. Já esteve na Guiné-Bissau e no Quénia. Crianças que apareciam violadas porque tinham ido à casa de banho sozinhas. Mulheres espancadas, sem razão nem porquê. “É uma questão cultural e é difícil mudar isso”, suspira. Mas não se resigna, não desiste. Timor-Leste foi um dos sítios mais complicado­s para este enfermeiro. Pela incapacida­de de fazer amigos e de estabelece­r ligação com os locais. “São muito desconfiad­os, o que é compreensí­vel. É muito difícil entrar num sítio onde as pessoas veem os seus filhos mortos, decapitado­s e entregues aos porcos para serem comidos.”

Apesar de dar o que tem e o que não tem por quem não conhece, Márcio admite que o que o faz deixar tudo para trás não é apenas o inconformi­smo ou a compaixão. “Continuo a acreditar que o voluntaria­do é o expoente máximo do egoísmo. Enaltece-nos o ego. E sempre que venho sei que trago mais do que aquilo que dei.”

As motivações de quem faz voluntaria­do diferem de pessoa para pessoa. A motivação de Sara Proença foi, mais do que a paixão pela medicina humanitári­a, a vontade de exercer medicina onde os meios são exíguos.

“A arte do engenho, os meios escassos e a sabedoria científica com alguma arte de mudança podem fazer a diferença”, esclarece a jovem médica ginecologi­sta. Cedo percebeu que ajudar fazia parte da sua vida. Estava ainda na faculdade quando decidiu ser voluntária. Em 2012, partiu para São Tomé e Príncipe, onde esteve quatro meses. Viveu sem água, sem luz e sem porta de casa.

Não viu guerra, nem a calamidade de um desastre natural, mas testemunho­u o subdesenvo­lvimento, a parca educação e a falta de meios. Viu um lugar que apenas precisa de pouco para fazer a diferença. “Às vezes, pequenos gestos, como educação básica para a saúde (lavar as mãos, utilização de rede mosquiteir­o, corte de matas – capinar) podem fazer a diferença a longo prazo.”

Apesar de estar segura, sentiu medo. “O medo de querermos ajudar e termos de enfrentar os nossos medos e a solidão. De o normal ser não haver nunca luz nem água e a única casa de tijolo ser a do centro de saúde.”

Do muito que imaginou e conseguiu fazer, o mais difícil foi tentar abordar a população para lhes explicar que não podem ter porcos ou galinhas nos corredores do centro de saúde e no local de internamen­to. Como nos disse Gustavo Carona: “O maior flagelo da sociedade é as pessoas não irem à escola. É não saberem ler nem escrever”. E foi essa a maior luta de Sara em São Tomé e Príncipe.

“Ao final de alguns meses começámos a perguntar-nos se não é deletéria a presença de equipas de voluntário­s. Isto porque sentimos que nas zonas com Organizaçõ­es Não Governamen­tais (ONG) não há qualquer investimen­to na população, na educação, na saúde por parte do ministério e que estas condições, básicas numa sociedade ocidental, passam para terceiro plano nestes países.”

Na Síria, os intermináv­eis conflitos empurraram e continuam a empurrar milhares de pessoas, principalm­ente mulheres e crianças, para os campos de refugiados. Uma cama, uma almofada, um teto, são quimeras para este povo mutilado e castigado.

“Era dentro do hospital, em contacto com os refugiados, que o peito apertava. Não por uma questão de inseguranç­a, mas sim pela bofetada na cara que é ver

o desespero de quem perdeu tudo e todos”, conta João Martins.

Tudo podia acontecer a qualquer momento

Tem 35 anos e é cirurgião plástico. Em 2014, esteve num campo de refugiados sírios na Jordânia. “A situação na Síria era catastrófi­ca e nos países mais próximos do norte da Jordânia – Líbano, Israel e Iraque – a situação era muito instável, parecia que tudo podia acontecer a qualquer momento.”

A sabedoria popular sempre diz “longe da vista, longe do coração”. Contudo, se se estiver atento, facilmente se vê que vivemos num Mundo “mais intolerant­e à diferença, seja por preconceit­os ou crenças”, observa João.

“Assistimos diariament­e a crimes de ódio e realidades em que se descartam vidas humanas por interesses políticos e económicos. Tenho a noção que vivemos numa espécie de casulos. As guerras e a violência parecem-nos distantes e pouco reais.”

Na Jordânia, João conheceu Mahmud, um cirurgião perseguido na Síria. Mahmud teve de fugir do país por ter aceitado tratar pessoas feridas em luta com os militares. O melhor amigo está preso, a mulher e filhas vivem na Síria, sem eletricida­de há dois anos. Não podia não o lembrar. Apesar de tudo o que passou, com a colaboraçã­o de médicos jordanos, teve força para montar as instalaçõe­s hospitalar­es na Jordânia para receber pessoas dos campos de refugiados espalhados pela fronteira com a Síria. Um exemplo de força e devoção. “O voluntaria­do não pode ser visto como uma experiênci­a fora da nossa realidade, que tem um início e um fim, valendo apenas como isso mesmo: uma experiênci­a. Somos voluntário­s quando, sem contrapart­idas, dizemos que sim e nos entregamos à simples vontade de querer ajudar porque podemos, porque sim, porque alguém precisa.” Tal como Mahmud. E a ajuda é realmente precisa. África parece ser o continente onde não é conhecida a paz, a felicidade, a calma. Também Armindo Ribeiro lá esteve, foi ajudar na mais recente tragédia

que abalou Moçambique. Mas uma das missões de voluntaria­do que mais o marcou foi há 20 anos. A primeira. Tinha rebentado uma onda de violência após

o referendo sobre a independên­cia de Timor-Leste.

Esteve lá três meses.

“De todos os cenários onde estive o de guerra [Timor] foi aquele em que senti mais medo. E nunca pensei encontrar aquilo que vi: foi impression­ante constatar a energia que os guerrilhei­ros gastavam para exterminar tudo”, relata Armindo, médico de medicina interna.

Traz na bagagem milhares de histórias, mas gosta de lembrar aquelas que mostram que, mesmo sem nada e com o coração preenchido de dor e escuridão, a bondade não se perde. Em Timor fez um parto de risco a uma criança. “Tinha apenas 14 anos.” Estava grávida de gémeos. O pai (dos bebés) tinha sido morto por guerrilhei­ros. A situação era frágil, mas todos sobreviver­am. Criança e filhos foram para casa. Não

tardaram em voltar ao hospital.

“A família da jovem apareceu lá a dizer que não tinha dinheiro para alimentar os bebés porque a mãe não tinha leite.” A fome era geral e a jovem, desnutrida, não produzia leite. “Com o pouco que tínhamos demos à rapariga alimentos ricos em nutrientes, barritas... O que havia. Rapidament­e voltou a produzir leite e puderam voltar para a aldeia.”

Não fizeram “nada de especial”, mas foi o suficiente. Aquela família, que nada tinha para dar a miúdos e a graúdos, com o apoio de toda a aldeia, comprou uma cabra para oferecer ao pessoal do hospital. “Não há palavras para descrever.”

“Partir somente porque faz sentido”

As pessoas são a razão da paixão de Inês Felizardo, de 29 anos, pelo voluntaria­do. “Partimos para podermos cuidar de pessoas e darmos o nosso melhor”, explica a jovem médica.

A mais recente missão de voluntaria­do fê-la na Beira, Moçambique, onde todas as mãos eram precisas. É destemida. Não receia os lugares nem as situações. Arriscar em cenários de desastre é, para Inês, onde faz mais sentido. “Temos uma falsa noção de segurança, mas a impermanên­cia está ao virar da esquina no nosso dia-a-dia.” É preciso o desprendim­ento para “partir somente porque faz sentido”.

Nunca sentiu que estaria a arriscar nem mais nem menos. E as doenças nunca a assustaram. “Viver neste contexto implica, acima de tudo, muito respeito pela condição humana.” Em Moçambique, onde, do avião, conseguiu contar pelos dedos os telhados que resistiram, encontrou pessoas pouco acomodadas e

que não ficavam à espera da ajuda que poderia nunca chegar.

“São as pessoas que fazem todas as nossas experiênci­as de vida, quer sejam as com quem trabalhamo­s, quer sejam as de quem cuidamos.” Terá com certeza amarguras e tristezas, mas gosta de lembrar os “sorrisos-lua” das pessoas que por ela passaram.

Acima de tudo, acredita que a ajuda humanitári­a, seja ela qual for, leva “esperança” às pessoas. “É uma mensagem muito poderosa. É o haver pessoas no Mundo que se importam”, remata.

Da solidaried­ade ao conforto. Do egoísmo aos corações onde cabe todo o amor do Mundo, são várias as razões que movem estes profission­ais de saúde nesta nobre missão que é ajudar. Poucas ou nenhumas

são as que os prendem e impedem de partir.

Para Gustavo, parar não é uma opção. Há muito por fazer. A mãe bem que lhe diz para deixar para os outros porque já fez que chegue. Mas nada o demove. “Nunca vou desistir, mesmo que não seja na linha da frente.” Quer continuar a sentir que está na equipa dos bons, na luta por um Mundo melhor. Só pensa nas pessoas, que são “reféns de todos os conflitos políticos e económicos” que semeiam a discórdia e a desgraça.

Márcio não sabe se será capaz. Sabe que quer continuar, sabe o que o motiva, mas sabe que é uma ajuda intermiten­te. “No dia em que deixar de ser egoísta, vou e não volto. Espero um dia ter coragem para

o fazer.”

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FOTOS: DIREITOS RESERVADOS
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a A primeira experiênci­a de Márcio Silva foi em 2010, no Haiti, onde um sismo fez 300 mil mortos i Gustavo Carona, médico anestesist­a, já fez 12 missões de ajuda humanitári­a em dez países
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João Martins tem 35 anos e é cirurgião plástico. Em 2014, esteve num campo de refugiados sírios na Jordânia
 ??  ?? Sara Proença estava ainda na faculdade quando, em 2012, partiu para São Tomé e Príncipe. Viveu sem água, sem luz e sem porta de casa
Sara Proença estava ainda na faculdade quando, em 2012, partiu para São Tomé e Príncipe. Viveu sem água, sem luz e sem porta de casa
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a Das muitas missões em que participou, Armindo Ribeiro nunca esqueceu a primeira, em Timor, onde esteve três meses
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a Inês Felizardo gosta de recordar os “sorrisos-lua” dos locais com quem se cruza nas missões

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