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ARGUIDO POR SALVAR MILHARES DE PESSOAS
Miguel Duarte é um dos alvos da justiça italiana numa investigação de auxílio à imigração ilegal. Enfrenta 20 anos de prisão e custos legais estimados em 500 mil euros.
“Acreditava que estava a assistir à grande crise humanitária da minha geração e que era absolutamente necessário fazer alguma coisa para ajudar”, revela Miguel Duarte. Por isso, no verão de 2016, aos 24 anos, depois de ter terminado o mestrado em Física Teórica, no Instituto Superior
Técnico (IST), em Lisboa, juntou-se à organização não-governamental (ONG) alemã Jugend Rettet para, a bordo do navio Iuventa, resgatar refugiados e migrantes em risco de serem engolidos pelas águas às portas da Europa.
Quando saiu para o mar pela primeira vez, em outubro de 2016, Miguel estava ciente dos riscos que corria: a possibilidade de trauma psicológico, o perigo inerente aos salvamentos no mar, o contacto com a agressiva Polícia Marítima Líbia. O que nunca pensou, confessa, foi “que pudesse acabar a fazer angariação de fundos para pagar a advogados”.
Em agosto de 2017, depois de quatro missões no mar, veio passar uma temporada em Portugal para o casamento do irmão. E também para recuperar forças e “arrumar” a cabeça, uma vez que, para muita gente, chegaram demasiado tarde. “Vemos pessoas a afogarem-se à nossa frente, mas são simplesmente demasiadas para conseguirmos chegar a todas”, conta enquanto desvia os olhos para longe, como se estivesse ainda a perscrutar o mar. “Recolher um corpo de um bebé de quatro dias da água está para lá de qualquer descrição. São coisas que nunca me vão sair da cabeça.”
Apesar disso, tinha as malas feitas e mais duas missões agendadas. Nunca chegou a partir. No dia 2 de agosto de 2017, o Ministério Público italiano arrestou o Iuventa e acusou a ONG Jugend Rettet de ajuda à imigração ilegal. Um ano mais tarde, Miguel e outros nove tripulantes foram constituídos arguidos, arriscam uma pena até 20 anos de prisão e custos com a defesa estimados em cerca de 500 mil euros, razão pela qual arrancou com a campanha de crowdfunding “Salvar Vidas não é um crime” no PPL. Os portugueses estão a responder ao apelo: a campanha começou no dia 7 de junho, com o objetivo de angariar dez mil euros. Oito dias depois, o valor já tinha sido ultrapassado.
No total, durante o tempo de operação do Iuventa,
o barco colaborou no resgate de mais de 14 mil pessoas. “E não cometemos crime nenhum”, garante. “Tudo o que fizemos foi salvar pessoas e fizemo-lo não só ao abrigo das leis internacional, como em colaboração com o Centro de Coordenação de Resgate Marítimo (MRCC) de Roma.” Miguel acredita que “as investigações são apenas uma jogada com um fim político: parar o resgate marítimo e estancar o fluxo de pessoas que chega a Itália”.
A verdade é que está a resultar: dos cerca de dez barcos de resgate de ONG que estavam a operar em 2016, parece restar apenas um. As investigações judiciais,
o medo das acusações e as dificuldades em obter autorização para atracar em portos italianos fizeram com que, uma por uma, parassem de operar. No início do mês, a porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados em Itália, Carlotta Sami, deu o alerta: o risco de naufrágio e morte no Mediterrâneo é hoje muito elevado, precisamente devido à falta de navios de resgate das ONG’s. Ou se intervém depressa, diz a porta-voz, ou o Mediterrâneo vai ser “um mar de sangue”.