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PROGRAMA SACHOLADA XXI

- POR Rui Cardoso Martins

Um clássico, em literatura, é obra que não envelhece, ou melhor, pode ler-se hoje e sempre como novidade. E um clássico no desporto é a renovação periódica de uma espécie de confronto final entre dois grandes adversário­s. Dito isto, ainda bem que o jovem Tiago (31 anos) e o velho Armando (80) não levaram a fundo, irremediav­elmente, o conceito português de sacholada e sobraram os dois para contar as envolvênci­as desse dia.

Há uns anos contei, nesta mesma varanda do país – Levante-se

o Réu – a crónica “Homem Mata Outro à Sacholada”. Um homem saíra ao caminho contra outro homem 30 anos mais novo. O primeiro era coxo depois de acidente cardiovasc­ular e, por gritarias da mulher, a vizinhança ficara a saber que também ficara impotente, de maneira que o jovem jocoso o chamava do passeio com a mão entre as pernas e dizia que, se ele não tinha, tinha ele ali para a sua mulher! Um dia o mais velho encheu-se e saltou-lhe de sacho na azinhaga, mas falhou e o jovem pegou no sacho e rebentou-lhe o crânio como a um cântaro, o polícia nem conseguia olhar para o crânio do velho. A desculpa do assassino foi, por si só, outro clássico: — Foi dos nervos.

Que é quando um português deixa de pensar e de ver.

Desta vez, a coisa entrará em estatístic­as mais leves. No banco dos réus, o jovem Tiago viajara da fronteira entre Loures e Odivelas, um dos limites da Grande Lisboa que parecem disputar, entre prédios-dormitório, charnecas, onde começa a ruralidade (mas dentro de Lisboa há tanta horta de couve...). Cenário: um pombal, hortas, baldios, um cafezinho ao fundo que era da mãe de Tiago. Defendeu-se o rapaz, acusado de graves agressões a um idoso: — Houve um desentendi­mento verbal, olho para trás e vejo-o a correr atrás de mim com uma enxada na mão. Virei-me, segurei na enxada e empurrei-o para o lado. Foi quando o senhor caiu. Tinha avisado: “Dás-me com ela e eu dou-te com uma pedra...”. Confor

me caiu, levantou-se de novo e vinha com a enxada. Se me viesse com a enxada, eu dava-lhe com a pedra. Ele desistiu, fui para o estabeleci­mento da minha mãe. Passada meia hora estava lá a polícia.

— E ele quando caiu magoou-se?, perguntou a juíza.

— É provável que sim, aquilo é só pedras!

A discussão vinha de um despejo de lixo, e até a qualidade do lixo fala desta zona de guerra: persianas arrancadas de uma casa e atiradas para junto do pombal. O irmão de Tiago (19 anos) foi quem deu o alerta do lixo:

— Quando lá cheguei, já o senhor Armando estava no chão. E vi

o meu irmão a dizer-lhe para ele não... O senhor Armando anda sempre com uma sachola...

— Estava deitado no chão?

— Não estava deitado, estava sentado em cima de uns caniços, e o meu irmão estava a segurar a sachola porque ele tinha-se ido a ele com a sachola. Um velhote... para fazer as porcarias que faz às pessoas que têm pombais! Ele põe veneno nas árvores, quando está vento o veneno vai para os pombos.

O senhor Armando contou mais tarde a sua verdade, como se diz agora. A procurador­a perguntou-lhe se conhecia Tiago.

— Foi o senhor que entrou propositad­amente na minha horta para me agredir. Eu tenho uma hortazinha, que não é num terreno meu, é da Câmara de Loures.

— Diga-me só como é que aconteceu?

— As cabras entravam por ali. Havia um pombal, mas o terreno era livre. Eu atirei com aquilo para um terreno baldio, umas ripas de persiana. O irmão veio ter comigo e eu disse: “eh pá, tem calma”! Eu tinha um sachito na mão, este senhor pôs o pé em cima do sacho... tentou tirar-mo e eu, como não lho quis dar, ele começou-me logo a agredir.

— Estava a fazer como que se fosse uma bengala?

— Exactament­e. Ele quis-me tirar o sacho e eu não deixei.

— E como é que lhe bateu?

— Foi com a mão fechada para me arrebentar logo a cara, que andei com a cara toda inchada. Depois do murro, andámos a puxar o sacho de um lado para o outro. Depois caí para cima de uns caniços. Eu não empurrava nada, só segurava o sacho!

E ficámos todos – espero eu – um pouco mais ricos de cultura clássica portuguesa, num encontro que acabou empatado.

O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.

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JOÃO VASCO CORREIA
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