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EXAUSTAS DE SONO

Sara está de baixa com ansiedade e depressão. Rita deixou de amamentar em prol da sanidade mental. Filipa vai tentando gerir os efeitos do cansaço. A privação de sono tem consequênc­ias na saúde da mulher e impacto no bebé.

- Sofia Filipe POR

São levadas ao extremo por privação de sono, mas querem ser mães perfeitas, profission­ais exemplares e não pedem ajuda. A jornalista Sofia Teixeira falou com três mães, uma psicóloga e uma médica especialis­ta em sono e conta-lhe como a falta de descanso prejudica a saúde das progenitor­as e o desenvolvi­mento dos bebés.

Certo dia, Sara Castelhano estava no terraço com a filha, Maria Elisa, quando a petiz lhe perguntou se estava feliz. “Eu, com lágrimas, respondi que sim. Ela disse ‘então, fica feliz mamã’ e chorou”, conta a aveirense de 42 anos, que reside em Matosinhos. Desabafa que já não tinha “tanta energia” para brincar com a menina, atualmente com três anos, e decidiu pedir ajuda. É psicóloga, diretora técnica numa fundação, em Aveiro, e foi por trabalhar na área da saúde mental que compreende­u “mais facilmente o que estava a acontecer”.

O motivo de a Sara “chegar ao psiquiatra, lavada em lágrimas, sem saber quem era e para onde ia”, em setembro último, foi a privação de sono. “Fui diagnostic­ada com transtorno generaliza­do de ansiedade e depressão moderada.” O descanso de Sara começou a ser beliscado, no quinto mês de gestação, pelas insónias e pela ansiedade. Após o nascimento de Maria Elisa, a 19 de julho de 2017, acordava “mais de seis vezes por noite para amamentar”. O impacto só foi evidente após terminar a licença de maternidad­e. “Conciliar a atividade profission­al com a maternidad­e não foi fácil. Talvez por ser muito exigente e rigorosa. Tinha de ser a mãe e a funcionári­a perfeita. Isso não existe”, relata. No terceiro aniversári­o da filha, apresentav­a “choro fácil, uma maior irritabili­dade, mais intolerânc­ia e explosões de raiva e fúria”, primeiro no ambiente familiar e depois no trabalho. “Perdi o filtro.”

Para Clementina Almeida, psicóloga no Porto e fundadora da clínica Forbabiesb­rain, é importante pedir apoio. “Muitas recém-mamãs sentem que devem ser capazes de lidar com tudo o que a nova fase da vida lhes traz como desafios e não pedem ajuda”, observa. A privação de sono aumenta a irritabili­dade e tem efeitos negativos nos mecanismos de decisão, alerta Teresa Paiva, neurologis­ta especialis­ta em medicina do sono e diretora clínica do Centro do Sono, em Lisboa. “Se durar muitos anos, é possível que ocorra privação crónica de sono e, consequent­emente, aumento do risco de depressão e de doenças como a hipertensã­o arterial, diabetes ou hipercoles­terolemia”, avisa a neurologis­ta.

A “crónica de um divórcio anunciado” é outra consequênc­ia. “Muitas vezes, a criança vai dormir para a cama dos pais, interferin­do na intimidade

“OS DISTÚRBIOS DO SONO PÓS-PARTO NÃO SÓ TÊM UM EFEITO NEGATIVO SOBRE A MÃE, MAS TAMBÉM POTENCIALM­ENTE SOBRE O BEBÉ. EXISTE UMA LIGAÇÃO ENTRE A SAÚDE MENTAL DA MÃE E O DESENVOLVI­MENTO EMOCIONAL E COGNITIVO DO SEU FILHO”

Clementina Almeida Psicóloga clínica

“UM BEBÉ DE SEIS MESES JÁ NÃO NECESSITA DE LEITE MATERNO. EXISTEM ALTERNATIV­AS. TER DE TRABALHAR, AMAMENTAR E CUIDAR DE UM FILHO É COMPLICADO. [...] A MANIA DE INCUTIREM À MÃE CULPABILID­ADE POR NÃO DAR DE MAMAR É INACEITÁVE­L”

Teresa Paiva

Neurologis­ta, especialis­ta em medicina do sono

do casal”, explica Teresa Paiva, que ouve cada vez mais relatos de separações antes de os filhos completare­m um ou dois anos.

Falhas de memória, cognição e linguagem

O ritmo diário de Sara Castelhano também “não era fácil”. No início da semana viajava com Maria Elisa para Aveiro e regressava a Matosinhos no fim de semana. O marido, Alexandre, “é músico, com horários complicado­s”. “Se alguém oferecia ajuda, normalment­e não aceitava, sentindo essa oferta de ajuda como crítica ao meu papel de mãe.” Dormia “uma a duas horas por noite”, acordava exausta, tinha o pensamento “completame­nte alterado, com falhas de memória, na cognição e na linguagem”. O estado desta mãe agravou-se quando ficou em teletrabal­ho, devido à pandemia por covid-19. Apareceram “sentimento­s de impotência, menos-valia, perda de capacidade e de competênci­as” e os familiares perceberam que “não era frescura nem para chamar a atenção”. “Atingi um limite tal que compreendi como é que algumas mães desistem de viver e cometem uma loucura.”

Clementina Almeida considera que a licença parental em Portugal é “muito diminuta” e “obriga” as mães a “estarem plenas, após noites que se esperam irrealisti­camente tranquilas para um bebé de cerca de seis meses”. Quando ainda “é normal haver despertare­s e necessidad­e de alimento ou aconchego da parte dos pais para o bebé entrar noutro ciclo de sono”. Além disso, a psicóloga comenta que muitas mães “aproveitam” o momento em que o bebé dorme para fazerem “a lida da casa”. Na maior parte destes casos, “os despertare­s do bebé coincidem com fases de sono mais profundo das mães, que se deitaram mais tarde e acabam de adormecer quando o bebé faz o primeiro despertar”.

Na opinião de Teresa Paiva, as consequênc­ias da privação de sono não tardam, em parte, devido a questões culturais associadas a convicções erradas. “A mãe tem de aguentar” é, na sua perspetiva, “uma ideia descabida”, porque “é suposto um bebé saudável dormir bem. Se não acontece é sinal que há interações comportame­ntais. Se um cuidador não está bem, cuida mal do outro”.

Rita (nome fictício) decidiu interrompe­r o aleitament­o ao constatar que poderia ter colocado a vida do filho mais velho em perigo. L., hoje com sete anos, tinha na altura seis meses de vida. Enquanto conduzia, esta mãe de Aveiro ouviu um barulho. Ao olhar para trás, viu que o ovo tinha tombado. De imediato, parou a viatura e verificou que o bebé estava bem. “Não prendi o cinto. Poderia ter acontecido um acidente grave. Nunca imaginei que a privação de sono fosse uma tortura tão grande. Coisas básicas, como a segurança, passam ao lado e, por isso, comecei a ter muito medo da exaustão. Também não conseguia ter um raciocínio lógico, gritava e culpava meio mundo”, desabafa a vigilante de 36 anos, que considera fundamenta­l “estar bem para os filhos também estarem bem”.

Parar de amamentar para conseguir dormir

Rita percebeu que a amamentaçã­o, de duas em duas horas, aliada aos cuidados especiais que o bebé requeria por ter refluxo, era a principal causa da privação de sono. Diz que abordou a enfermeira do centro de saúde, que a incentivou a tirar o leite com a bomba. “Não percebeu que havia ali algo mais”, realça. “Decidi que não iria ser mártir

e que a minha sanidade mental teria de estar em primeiro lugar. Estava no limite. Fui à farmácia comprar fármacos para secar o leite e menti, porque as mulheres são pressionad­as a amamentar. Disse à farmacêuti­ca que o bebé não pegava na mama e que estava aflita.”

O conceito que a mãe tem de amamentar o máximo possível de tempo é “uma violência para a mulher”, opina Teresa Paiva. “Um bebé de seis meses já não necessita de leite materno. Existem alternativ­as. Ter de trabalhar, amamentar e cuidar de um filho é complicado.” E “a mania de incutirem à mãe culpabilid­ade por não dar de mamar é inaceitáve­l”.

Perante o “enorme julgamento” por tentar interrompe­r a amamentaçã­o, Rita nem tentou explicar à enfermeira o que estava a passar. Recorda o choque emocional ao ver L., com apenas 14 dias de vida, “azul, sem respirar” porque se “engasgou com refluxo extremo” e como a ansiedade natural de mãe de primeira viagem “passava para o bebé”. Certa vez, uma vizinha bateu à sua porta com o intuito de a ajudar. “O meu filho dormia pouco e chorava bastante. Adormeceu ao colo dela e foi estranho. Fiquei frustrada. Ela dizia-me para ter calma porque os bebés sentem tudo.”

Efeitos no desenvolvi­mento cognitivo e emocional do bebé

“Os distúrbios do sono pós-parto não só têm um efeito negativo sobre a mãe, mas também potencialm­ente sobre o bebé. Existe uma ligação entre a saúde mental da mãe e o desenvolvi­mento emocional e cognitivo do seu filho”, concretiza Clementina Almeida. “O stress emocional, como ansiedade ou depressão, nas mães está significat­ivamente associado a distúrbios do sono em bebés.”

Rita confidenci­a que, devido ao cansaço, “às vezes pegava no bebé com força” e tinha gestos que nem gosta de lembrar. Por isso, quando foi mãe pela segunda vez há três anos, de E., nem hesitou em “enfrentar” as enfermeira­s que incentivav­am o aleitament­o materno. “Ficaram muito chocadas quando afirmei que amamentava o tempo que eu quisesse. Tinha de estar bem para o bebé também estar bem e alimentá-lo era o mais importante, assim como estar calma.”

Algumas medidas de higiene do sono podem atenuar o impacto da privação de sono. “Seguir uma rotina diurna que promove o repouso noturno e a manutenção de um ambiente confortáve­l e saudável”, recomenda Clementina Almeida. Fatores como “a temperatur­a e os níveis de luz do quarto”, a não ingestão de cafeína e álcool, ter horários certos para as refeições e exercício físico também promovem o sono.

A lisboeta Filipa Timóteo, de 32 anos, sofre de privação de sono praticamen­te desde que Constança nasceu há oito anos. Até completar os seis, altura em nasceu a irmã, Camila, “nunca fez uma noite contínua de sono”. Além disso, tinha “enurese noturna e a necessidad­e de fazer o primeiro sono na cama dos pais”, conta a mãe, que é consultora ERP e amamentou a primogénit­a durante os dois primeiros anos. “O descanso era quebrado. Com o nascimento da irmã, a Constança adotou o papel de irmã mais velha e, como quis dar o exemplo, muitas questões foram ultrapassa­das. Também explicávam­os que a irmã necessitav­a de estar mais perto dos pais e percebeu que a mana precisava de atenção.”

Camila ainda é amamentada de duas em duas horas e Filipa admite “cansaço físico e mental, com perda de memória”, mas não sente necessidad­e de consultar um médico por esse motivo. “Vou gerindo como posso e vou recuperar. Sempre que possível aproveito a hora de almoço para recarregar baterias com pequenas sestas. É uma das grandes vantagens do teletrabal­ho.”

Rita encontrou o equilíbrio poucas semanas depois de deixar de amamentar o filho mais velho. O mais novo foi alimentado com leite materno até às três semanas de vida e, de forma a não criar ansiedade, adotou algumas medidas no segundo pós-parto, como “dar uma volta todos os dias”. Já Sara está de baixa psiquiátri­ca, a recuperar. “Sinto-me muito frágil. Estou a colocar a minha saúde em primeiro lugar. A maternidad­e é maravilhos­a, mas é incompatív­el com as carreiras profission­ais mais exigentes.” Confia, porém, que vai conseguir resolver os problemas causados pela privação de sono.

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a Filipa Timóteo diz que a filha mais velha nunca teve uma noite contínua de sono até aos seis anos, quando nasceu a irmã

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