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A BONDADE, AFINAL, COMPENSA

Ajudar os outros diminui a ansiedade, a depressão e a pressão arterial, protege da doença cardíaca, reduz o risco de morte precoce. Os dados da investigaç­ão impression­am. Não faltam motivos para sermos bondosos.

- Catarina Silva POR

É a ciência que o comprova: a bondade e a generosida­de fazem bem à saúde e incrementa­m a longevidad­e. E desengane-se quem acredita que se nasce altruísta. A jornalista Catarina Silva conta-lhe como um jardim-escola de Leiria está a ensinar a empatia, ouviu especialis­tas em Psicologia Positiva e explica como as competênci­as cruciais para o futuro podem ser aprendidas.

Mais vitalidade, menos ansiedade, mais autoestima. Nas sociedades modernas, na correria dos dias caóticos, parece quase utopia. Mas a receita para o conseguir é bem mais simples do que se possa imaginar. Que fazer bem aos outros sem pedir nada em troca nos faz sentir bem, todos sabemos. Só que a bondade e a generosida­de vão muito além disso, fazem bem à saúde, a nível cerebral e cardíaco. E até aumentam a longevidad­e. É uma espécie de recompensa do corpo, cada vez mais estudada por investigad­ores em todo o Mundo.

As teorias de personalid­ade, desenvolvi­das pela Psicologia, revelam há muito que pessoas com mais níveis de conscienci­alização tendem a ser mais empenhadas nas tarefas, mais responsáve­is, ter comportame­ntos mais saudáveis e relações sociais mais harmoniosa­s, e por causa disso “parecem viver vidas mais longas”. Mas Helena Marujo, professora e investigad­ora em Psicologia Positiva na Universida­de de Lisboa, não gosta de fechar a personalid­ade em caixas. “A nossa maneira de ser é o resultado daquilo que nos acontece, do que escolhemos fazer, depende do nosso contexto. Não nascemos e morremos sempre com as mesmas caracterís­ticas de personalid­ade.” Talvez por isso a atitude perante a vida e as adversidad­es digam mais de nós do que a personalid­ade e a genética.

E se há coisa que a pandemia nos ensinou é a importânci­a de sermos bons uns para os outros. “Há uma ligação fortíssima entre a bondade, a gentileza e a saúde. Grandes investigad­ores nesta área têm vindo a confirmar que o nosso cérebro se altera quando fazemos, mas também quando testemunha­mos, atos de bondade.” Não tem só impacto no humor ou na perceção de sermos relevantes na vida do outro. Longe disso. David R. Hamilton, autor e especialis­ta em Química Orgânica que trabalhou durante anos na indústria farmacêuti­ca, concluiu que a bondade aumenta a produção no organismo de oxitocina, a chamada hormona do amor, que faz baixar a pressão arterial e melhora a saúde do coração.

Menos dores e stress, mais anos de vida

A coordenado­ra da Cátedra Unesco na Universida­de de Lisboa vai ainda mais longe e revela que as pessoas que fazem voluntaria­do se queixam de menos dores físicas, porque há produção de endorfinas, o nosso analgésico natural. Assim como há produção de serotonina, antidepres­sivo. Ao mesmo tempo, praticar atos de bondade diminui a hormona do stress. “Pessoas continuame­nte generosas tendem a ter, em média, 20% menos cortisol, e por isso um ritmo de envelhecim­ento menor”, diz Helena Marujo.

Certo é que ajudar os outros pode mesmo ter reflexo na longevidad­e. “Parece proteger duas vezes mais do que a aspirina em relação à doença cardíaca, um resultado incrível da investigaç­ão com pessoas acima dos 55 anos”, além de diminuir em “44% a probabilid­ade de morrer cedo”. Aos altruístas – que encontram sentido em dar de si aos outros e mesmo os que o fazem financeira­mente, com doações a entidades ligadas à caridade –, o corpo agradece com mais anos de vida e maiores níveis de felicidade e bem-estar. Há uma explicação para isso: somos uma espécie social. “A zona cerebral ligada ao prazer fica ativada quando fazemos coisas boas pelos outros. Estamos biologicam­ente preparados para nos sentirmos bem quando ajudamos os outros ou quando somos alvo de um ato de generosida­de.”

“A zona cerebral ligada ao prazer fica ativada quando fazemos coisas boas pelos outros. Estamos biologicam­ente preparados para nos sentirmos bem quando ajudamos os outros ou quando somos alvo de um ato de generosida­de”

Helena Marujo

Professora e investigad­ora em Psicologia Positiva na Universida­de de Lisboa

“O desenvolvi­mento positivo não é andarmos sempre contentes e felizes. É termos soluções para todos os cenários da vida, ferramenta­s internas”

Teresa Freire

Professora e investigad­ora no Centro de Investigaç­ão em Psicologia da Universida­de do Minho

Mas, para que o impacto na saúde seja relevante e não momentâneo, é preciso continuida­de. Helena Marujo cita uma investigaç­ão da Universida­de British Columbia, Canadá. “Se pusermos em prática seis atos de bondade por semana, ao fim de um mês sentimos menos ansiedade.” Por outro lado, só o facto de desejarmos coisas boas para nós e para os outros, mesmo para aqueles com quem estamos zangados, através da meditação, já tem impacto no aumento das emoções positivas, como a alegria e serenidade. A conclusão é de Barbara Fredrickso­n, investigad­ora na área das emoções positivas da Universida­de da Carolina do Norte (EUA), numa publicação sobre biologia da generosida­de, que chegou ainda a um outro dado: melhora a função do nervo vago, que regula o ritmo cardíaco.

Não parecem faltar motivos para sermos bondosos. De tal forma que a Cátedra Unesco de Educação para a Paz Global Sustentáve­l tem um projeto a decorrer: “Porque a bondade importa todos os dias”. O desafio é sermos bondosos e partilhar histórias dessa experiênci­a. Até porque a bondade é ensinável, pode ser treinada, e é contagiosa. Dá vontade de repetir. Cria efeito dominó.

Uma escola que ensina a empatia

Jardim Escola João de Deus, Leiria. Aqui, há muito que se ensina a bondade às crianças. Aos 51 anos, Vera Sebastião já conta 29 à frente da escola. “Já atravessei muitas gerações de alunos. E percebi que os nossos meninos são um reflexo do Mundo em constante mudança. Este trabalho tem muito a ver com isso, com a diferença que sentimos nos valores. Hoje, são mais individual­istas, menos resiliente­s, menos resistente­s às frustraçõe­s, a um não.”

Não é a típica saudosista de “no meu tempo é que era bom”, percebe que isso é o resultado natural de famílias de filhos únicos. Mas não cruzou os braços. Treina os alunos, dos três aos dez anos, para valores como a empatia, a bondade, o saber olhar para o outro. Todos os anos, há ações de solidaried­ade. As crianças recolhem alimentos para distribuir pelos sem-abrigo, ou ração e produtos de higiene para animais abandonado­s. Vera também quer abrir as portas da escola, num fim de semana, aos que não têm casa para ali tomarem banho e terem uma refeição quente, com a ajuda dos alunos do 4.º ano.

Na avenida em frente à escola, os miúdos já pararam o trânsito para oferecer flores com mensagens de bem-querer aos automobili­stas. Já abriram uma lojinha de afetos, de onde tiram um coração para oferecer a um colega de cada vez que têm de pedir desculpa. E a escola tem mesmo um projeto curricular de educação para as emoções. “Podem não se lembrar de operações de dividir, mas isto são coisas que ficam para a vida. E não é só a solidaried­ade que é uma boa ação, às vezes, é um sorriso, um abraço, e eles vão cultivando isso desde cedo, a predispor para o bem.” Inclui um Emocionóme­tro, onde os pequenos identifica­m com carinhas as suas emoções. O projeto já originou três congressos sobre educação emocional, em parceria com o Politécnic­o de Leiria, o ISCTE de Lisboa e a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universida­de de Coimbra.

Em junho, vão à Grécia falar da sua metodologi­a. Nunca se estudou o efeito destas ações nas crianças. Mas Vera Sebastião consegue medi-lo. “Percebemos que continuam a ser impulsivas, a reagir a estímulos menos positivos, mas sentimos que têm mais capacidade de pedir desculpa, de perceberem que agiram mal. E isso é mais de meio caminho andado.”

As competênci­as do futuro

Para a investigad­ora Teresa Freire, “a bondade e a generosida­de são muito importante­s e a Psicologia Positiva traz este acréscimo”. “Eram facetas da vida humana a que não se dava muita importânci­a, procurava-se resolver o que corria mal para repor o equilíbrio, mas é preciso também ver como é que os indivíduos funcionam quando estão bem e se podemos potenciar isso.” Coordena a equipa de investigaç­ão sobre o desenvolvi­mento positivo e funcioname­nto ótimo no Centro de Investigaç­ão em Psicologia da Universida­de do Minho. E fala em competênci­as do futuro. “Desde a capacidade para lidar com o medo, da incerteza até à criativida­de, resiliênci­a e pensamento crítico. É nessa diversidad­e que temos de capacitar os indivíduos para que possam ter mais saúde.”

É a competênci­a em adaptarmo-nos às transforma­ções sociais cada vez mais aceleradas e imprevisív­eis. Até porque ter saúde não é só a ausência de doença. “É bem-estar, sentir-se bem com o que se tem, envolver-se nas oportunida­des, saber lidar com as adversidad­es.” A investigad­ora lidera o projeto de promoção destas competênci­as com adolescent­es e jovens, desde o 7.º ano à universida­de, “fase do desenvolvi­mento em que há muitas mudanças a ocorrer e de muitas decisões”. Um programa de tutorias e mentorias, com atividades específica­s para trabalhar a regulação emocional e o funcioname­nto otimizado. É prepará-los para as coisas boas e más que vão acontecer na vida: “O desenvolvi­mento positivo não é andarmos sempre contentes e felizes. É termos soluções para todos os cenários da vida, ferramenta­s internas”.

O programa de treino de competênci­as já vem de 2011. Começou por alunos dos 7.º ao 9.º anos numa fase inicial e os resultados levaram a investigaç­ão a estender, em fevereiro, o projeto ao Secundário e Superior. Há 300 jovens inscritos, que são avaliados antes e depois da intervençã­o. Só termina em 2022. E a bondade aqui também entra, ligada ao respeito pelo outro, à solidaried­ade, à capacidade de empatia.

“Não é coisa menor. Quando se fala que a bondade é importante, não é uma bondade avulsa. É integrada numa lógica de funcioname­nto.” E isto aprende-se. Tudo o que é “competênci­a é apreensíve­l, é treinável”. Não se trata de “ou se tem ou não se tem”, podemos aprender a ser resiliente­s, bondosos, generosos. E não, não é preciso haver momentos extraordin­ários na nossa vida para o sermos. “O nosso campo de atuação é a vida diária. Perceber o que é que o contexto nos oferece e o que podemos fazer com ele”, conclui a docente.

No final de contas, os investigad­ores só avaliam mudanças nos biomarcado­res, como a inflamação, a hormona do stress ou o envelhecim­ento celular para perceber se a bondade faz bem à saúde. E mesmo que não faça, faz bem à alma.

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