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As boas pessoas

- Por Valter Hugo Mãe

Há uns anos, a Adília Lopes publicou um poema em que dizia gostar apenas das boas pessoas. Importa pouco o resto, se são bonitas ou feias, ricas ou pobres, o único critério do gosto deve ser o da lisura humana, essa raridade na espécie.

Quando estava na universida­de, atarefado com estudar Direito, cheio de conceitos e detalhes, lembro de um debate na aula de Filosofia em que se problemati­zava a legitimida­de de legislar. Com maior ou menor dispersão, lá se concluiu que a lei se impõe por sermos falhos, mesmo que de boa-fé, somos falhos, muitas vezes julgamos fazer o certo quando erramos rotundamen­te. Mesmo que sejamos boas pessoas. Nunca mais me esqueci desta conversa, e nunca mais parei de ver as boas pessoas a fazer os mais cruéis gestos.

As boas pessoas são, como as más, medricas e o medo pode ser muito burro e levar a que se tomem decisões à luz de ideias equívocas, sem sentido. É um bocado como quando vamos ao mercado cheios de fome. Tendemos a comprar por gula aquilo de que não precisamos. Exageramos tudo. Estamos sob pressão e não nos controlamo­s lucidament­e. O medo é indutor de preconceit­o e sedimenta em nós convicções à sua medida e não à medida da realidade.

Pensar o mundo e as decisões que tomamos para a sociedade implica, pois, que saibamos racionaliz­ar nossos medos e nossos preconceit­os, de modo a sermos justos e, afinal, fazermos coincidir nosso gesto com a intenção de nos mantermos humanos, de nos mantermos boas pessoas.

Não é possível a ideia de humanidade perante a exclusão, a ofensa pela raça ou género, a ofensa pela intimidade livre de cada um ou pela idade, pela origem, pela fé, pela diversidad­e cultural, pelo diverso dos corpos. A humanidade é de todas as maneiras e a única universali­dade que se impõe é a conviviali­dade em paz, em absoluto respeito, a sobrevivên­cia de todos com a mesma dignidade, o mesmo sonho de conseguir melhor, mais saúde e mais amor.

Apetece levar o breve poema da querida Adília Lopes ao ouvido de cada pessoa para lhe perguntar acerca da certeza de sua própria benignidad­e. Cada um de nós diante desse poema como de um espelho. O que haveria de responder?

Alguns dias deviam começar nesse espelho. Só depois de ponderarmo­s profundame­nte a hipótese de estarmos a ser levados a prestar serviço à maldade do Mundo, deveríamos sair à rua para fazer o que temos de fazer. Corrigindo tudo. Corrigindo o que o medo e o preconceit­o criaram em nós.

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O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA

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