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Nat King Cole

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Uma voz pode ser lugar e tempo inteiros. Uma espécie de modo de viver, de modo de ser, que nos invente a totalidade do que nos basta, do que nos inspira. Quero dizer, algo onde se cabe, de onde se sente termos origem e destino. Não identifica apenas quem a tem, identifica quem por ela se reconhece e se comove.

Tenho a impressão do impossível perante a voz de Nat King Cole. O seu veludo, a educação extrema onde tudo é melodia e nada é grito, o timbre, a generosida­de caudalosa do som, o seu jeito nocturno, soturno, delicado, absolutame­nte afinado, tudo conspira para a raridade do seu dom e da sua inteligênc­ia. Sempre o junto com outras figuras maravilhos­as, como Johnny Hartmann, Billie Holiday ou Ella Fitzgerald, mas depois sinto que há nele uma fortuna maior, algo que não tem que ver com o repertório (segundo o qual preferiria a senhora Holiday). Cole tem a elegância extrema, uma espécie de virtude que não se prejudica nem com o facto de ter cantado algumas das canções mais pífias do seu tempo.

Como com a voz de nossa mãe, de alguém que amamos, a voz de um filho ou a que sonhamos para Deus, a voz de Nat King Cole acompanha-me como uma ideia pura. Uma ideia da capacidade de perfeição que se manifesta mesmo à revelia da falha humana. Na boca de Cole acontece o milagre da perfeição como nem o seu coração mais preparado haveria de ter como garantir. O que faz Cole é um modo de transcendê­ncia. Um gesto sobre-humano.

Emigro para a sua voz sempre que me quero seguro ou anseio por justiça. Escutando ou lembrando apenas, a sua voz tanto me leva de volta a casa como me diminui a angústia e a fúria, oferece-me o esplendor que me convence de que, afinal, existe um caminho até onde cada coisa presta um serviço à ideia de humanidade pela qual corro. Em tantas ocasiões, mudo, percorro na memória as palavras agora sagradas “fly me to the moon and let me play among the stars”, e estou tão distante do corpo quanto coincido com meu próprio avatar de equilíbrio e justiça. Estou nessa dimensão imaterial onde, afinal, radica tudo quanto jamais nos abandonará: a identidade que nos define e que sabemos ou não educar e nutrir.

Deixei de ouvir Nat King Cole pelas janelas das casas na rua. Antigament­e, ainda acontecia. Agora só se ouve uma trapalhada refilona que não faz paz nem parece única. Por causa disso, tenho a impressão de que a dureza de ouvido está a desgraçar a felicidade. Até a tristeza é mais desamparad­a, sem compensaçã­o alguma que a melancolia do senhor Cole também conforta. É tudo uma tragédia.

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O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA

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