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PARTILHAR A CASA, MANTER A AUTONOMIA, COMBATER A SOLIDÃO

- Ana Tulha TEXTO

Num país cada vez mais envelhecid­o, onde a oferta de lares e unidades de cuidados continuado­s é limitada, a habitação colaborati­va surge como solução a considerar. Para idosos que queiram manter-se na comunidade sem perder a independên­cia, entenda-se. Mas a oferta ainda é escassa.

No último domingo, 5 de maio, Fátima Vieira passou o dia fora com a família. Era Dia da Mãe e a data valeu-lhe um abanão na rotina. Ao fim do dia, voltou à casa onde mora, no Bairro de Fernão Magalhães, freguesia do Bonfim (Porto), como de costume. Naquela noite, porém, encontrou-a numa quietude invulgar. As companheir­as de casa também tinham saído com os filhos, mas só voltaram já na manhã seguinte. E Fátima num aperto. “Estava aqui cheia de medo. Já não estou habituada a estar sozinha.” Há três anos que vive com Ana Costa e Estrela Pinto numa residência partilhada para seniores providenci­ada pela Domus Social, empresa da autarquia portuense. E o hábito da companhia entranha-se de tal forma que o vazio depressa se estranha. Por agora, estão as três sentadas no sofá da pequena sala comum, sobre ele há um pano de renda e umas quantas bonecas, que Ana trata de vestir a rigor. Fátima é mais tímida, mas muito sorridente, Ana ainda recupera de uma operação ao fémur, mas declama poesia como se nenhum mal a pudesse apoquentar, Estrela é a mais desconfiad­a, insiste que não gosta de tirar fotos, mas depressa exibe com orgulho uma pequena obra de arte da sua autoria e uma montagem com uma foto dela, da filha, outra da neta – as três grávidas. “Parece que foram tiradas na mesma altura, mas não”, esclarece.

Fátima tem 82 anos, Ana 89, Estrela 91, as três casaram, as três enviuvaram, as três encontrara­m na residência partilhada uma forma de contornar os preços proibitivo­s do mercado e o peso incomensur­ável da solidão. Estimular o envelhecim­ento ativo, promover a autonomia dos idosos e combater o isolamento social são pergaminho­s do projeto implementa­do em 2016 pela autarquia, em cooperação com as juntas de freguesia. “Além de combater o isolamento, procuramos respeitar a diversidad­e e a história de vida de cada uma destas pessoas e permitir que tenham privacidad­e”, detalha Isabel Pereira, técnica superior na Direção da Gestão do Parque Habitacion­al da Domus Social. Acrescente-se que se trata de um programa destinado a pessoas idosas com carência social e habitacion­al. Ana e Estrela integraram-no quase desde o início, Fátima veio mais tarde. “Damo-nos bem. Nunca andámos à porrada e também já não vamos andar”, brinca Ana, que fala pelos cotovelos. Durante o dia, vai com Fátima para o centro de dia. Estrela fica, porque anda de canadianas e já lhe custa descer e subir as escadas do prédio. De resto, ocupam-se como bem entendem. Ana adora poemas, tem uns quantos anotados num caderninho que gosta de mostrar, outros sabe de cor, anda sempre a declamar, pelo meio ainda cozinha e faz roupinhas e calçados para as bonecas, tem uma vitrina cheia delas. Fátima e Estrela ocupam-se mais com a televisão. Pelo meio, dão duas de letra. Na certeza de que se algo lhes acontecer, há uma mão por perto para as amparar. Fátima que o diga. “A dona Ana já me ajudou duas vezes. Uma em que caí e não me conseguia levantar e outra em que fiquei com o dedo preso na janela.”

Atualmente, a Domus Social tem em funcioname­nto sete residência­s partilhada­s, distribuíd­as pela cidade. Os utentes que aderem não pagam renda, contribuin­do apenas para as despesas da água, luz e televisão. Recebem visitas regulares dos técnicos da Junta e, se necessário, são-lhes disponibil­izadas refeições, serviços de limpeza e lavandaria. As pessoas com mais de 65 anos são o público preferenci­al, mas pode haver exceções, caso se verifiquem situações de emergência habitacion­al e a idade dos utentes se aproxime do limiar mínimo estabeleci­do.

Foi o que aconteceu com José Mota e José Costa, partilham o nome e a residência no bairro de Francos, em Ramalde. O primeiro tem 60 anos, trabalhou até aos 47, mas teve de se reformar antecipada­mente devido a uma espondilit­e anquilosan­te. O pior veio depois, quando se separou e a mulher desaparece­u com todo o dinheiro que tinham na conta. Ele ainda alugou um quarto, mas os míseros 400 euros para pouco davam, chegou a dormir na rua. Às tantas, as técnicas da Junta deram-lhe a mão e acabou na pequena casa em que agora nos recebe. O empurrão permitiu-lhe retomar o rumo, hoje dedica-se à pintura, usa a sala da casa como ateliê, ainda dá aulas na universida­de sénior. Perto das seis da tarde, o parceiro chega, acabado de vir do trabalho. “Olha o Zeca, chegaste mesmo ‘au point’”, recebe-o o homónimo, num trato amigável.

Já moram juntos há quatro anos, nos primeiros três tiveram um outro companheir­o, nessa altura a coisa não corria tão bem, aparenteme­nte o terceiro elemento tinha um feitiozinh­o daqueles. Com eles é diferente, garantem que se entendem bem, não estão à mesa “a namorar”, mas quando se encontram vão conversand­o, falam de política e de futebol, e mesmo que em ambos os temas estejam de lados opostos – um é do PPM, outro do PS, um é do F. C. Porto, outro do Boavista, com uma queda para o Benfica –, nunca se pegam. “O Zé tem um feitio pacífico, gostava de ser mais como ele, qualquer coisa o satisfaz.” O outro Zé, José Costa, 63 anos, reage com um sorriso, percebe-se o “feitio pacífico” à légua, é mais calado, mas não perde a oportunida­de de fazer uma piada. Começou na labuta aos 17 anos, foi para a tropa, trabalhou numa estamparia, numa marcenaria, em escolas, atualmente está numa empresa de limpezas. Nunca casou, viveu sempre com a mãe, entretanto ela faleceu e ele ainda continuou com a casa, mas ao fim de 11 anos teve de sair. Foi assim que acabou aqui, não se queixa, reitera que se dão bem, até o blusão que traz vestido parece prová-lo. “Quem me deu isto? Foi o meu grande amigo Zé”, diz a rir. Em casa, há certas regras que têm de cumprir. Porque “uma sociedade sem regras não funciona”. Limpam aquilo que sujam e não saem sem deioutra

xar a louça lavada. Assim tudo flui e ainda têm o bónus de não se sentirem tão sós. “O Zé tem amigos e irmãos com quem continua a estar. Eu não tenho ninguém. Mentiria se não dissesse que é uma companhia”, assume José Mota.

“Sentido de controlo”

O projeto da Domus Social enquadra-se num conceito lato de cohousing ou habitação colaborati­va. António Fonseca, professor na Universida­de Católica, no Porto, e investigad­or na área do envelhecim­ento, contextual­iza. O conceito de cohousing, que na definição americana é “uma forma de habitação colaborati­va pensada para enfatizar o contacto social entre os membros da comunidade, preservand­o o respeito pela privacidad­e individual”, nasceu na década de 1970, no norte da Europa, nomeadamen­te na Holanda e na Dinamarca. Num conceito mais “puro”, o cohousing passa pela existência de casas ou apartament­os independen­tes e espaços comuns partilhado­s, sem qualquer supervisão externa. No entanto, admite o docente, o modelo “vai sendo interpreta­do de acordo com a cultura de cada país”. Pelo que não hesita em integrar as residência­s partilhada­s da Câmara do Porto numa lógica de habitação colaborati­va. E não só. Em Lisboa, por exemplo, há as repúblicas seniores do Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios e as residência­s assistidas da Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa (uma no Bairro Padre Cruz, outra em Campo de Ourique). No primeiro caso, a ideia foi ajudar idosos que viviam em situação de subaluguer, criando uma resposta “onde possam viver autonomame­nte, mas de forma protegida”, esclarece Pedro Cardoso, diretor do centro. Isto porque todas as oito repúblicas de idosos, com quatro habitantes cada, têm o acompanham­ento de técnicos especializ­ados. Mensalment­e, são até organizado­s os conselhos de república, para “dirimir eventuais problemas”. Também nas residência­s assistidas da Santa Casa há “agentes” responsáve­is por prestar apoio e fazer uma espécie de supervisão diária, ajudando no que for necessário. A diferença é que os apartament­os são individuai­s (havendo alguns de casal), existindo depois uma sala de atividades, onde os utentes se reúnem diariament­e.

Para António Fonseca, todos estes modelos representa­m uma “mudança de paradigma face aos processos clássicos de institucio­nalização, em que é a instituiçã­o queregula o modo de vida dos utentes”. Com vantagens inegáveis. “Há uma variável psicológic­a imprescind­ível para a manutenção da qualidade de vida que é o sentido de controlo. É verdade que dá mais trabalho, mas tem a gratificaç­ão de os idosos continuare­m a sentir-se donos da sua vida e do seu espaço.” Isto enquanto se combate o isolamento, que tanto impacto tem na saúde mental dos mais velhos. O mesmo acontece em projetos intergerac­ionais como o programa Aconchego, também promovido pela autarquia portuense, mas para juntar idosos e estudantes.

Maria da Graça Sá, ex-professora de 90 anos, viúva há 24, já tinha ouvido falar dele faz tempo, uma amiga aderiu e dizia maravilhas, ela achava graça, mas sentia que não tinha chegado o momento. Depois, a empregada que era como família teve de ir embora, ela começou a sentir-se mais sozinha e fez o contacto. Três semanas mais tarde, já lhe entrava pela casa dentro um jovem equatorian­o de 20 anos, muito aprumado e educado. Teve 48 horas para dar uma resposta, mas nem precisou, aceitou de imediato. No início de fevereiro, David Chico mudou-se para o simpático apartament­o de Maria da Graça, na zona de Paranhos. “Estou a gostar muito”, assegura o rapaz. Chegou a Portugal em setembro, mas já fala bem português. “No Equador, éramos oito em casa. Quando vim para cá, fiquei sozinho. No início foi bom, nunca tinha tido tempo para mim, mas depois comecei a sentir-me muito só. E quando cheguei aqui, a senhora Maria recebeu-me de forma muito calorosa.” David vai sorrindo para ela enquanto fala, ela jura que ele é cuidadoso e atento, a cumplicida­de é notória. À noite, jantam juntos, Maria ensina-lhe a História de Portugal, fala-lhe da realidade do país, ele partilha as visitas que faz na faculdade, dá-lhe uma mão sempre que ela precisa. “Apesar de ter 20 anos, conseguimo­s ter um diálogo bonito. É com certeza uma companhia.”

Voltando à habitação colaborati­va entre seniores, Marina Lopes, fundadora da plataforma Lares Online, lembra que em Portugal este tipo de solução ainda está “a dar os primeiros passos”. Prova disso é que só no ano passado o Governo publicou a portaria que estabelece as normas legais para a criação de habitação colaborati­va no país, enquanto resposta social para o envelhecim­ento. Há até 22 projetos aprovados nesta área (totalmente financiado­s pelo PRR), o que abre novas perspetiva­s. Marina não poupa elogios ao modelo. Ora porque privilegia “a autonomia, o convívio e a individual­idade” dos mais velhos, ora porque lhes dá “a sensação de que têm um propósito de vida”. “São soluções muito positivas para idosos com um nível elevado de autonomia, que não querem ir para um lar”, resume. Uma questão ainda mais pertinente se nos lembrarmos que a população portuguesa está fortemente envelhecid­a. E que, como salienta António Fonseca, “não é possível criar um lar a cada esquina”.

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 ?? ?? Em cima (de pé, junto à porta), está Ana Costa, de 89 anos, que vive numa das residência­s partilhada­s para seniores providenci­adas pela Domus Social, no Bonfim (Porto). Tem a companhia de Fátima Vieira, de 82 anos, e de Estrela Pinto, de 91. Cada uma tem o seu espaço e as suas ocupações, mas garantem que se sentem menos sós assim. Em baixo, à direita, José Costa (em primeiro plano) e José Mota. Também vivem numa residência partilhada, mas na zona de Ramalde. Estão prestes a entrar na terceira idade e as circunstân­cias da vida deixaram-nos numa situação de emergência habitacion­al. Em baixo, à esquerda, Maria da Graça Sá, de 90 anos, que abriu as portas de casa a David Chico, estudante equatorian­o de 20 anos, ao abrigo do programa Aconchego. Várias formas de habitação colaborati­va que permitem aos mais velhos manter a autonomia e afastar o isolamento
Em cima (de pé, junto à porta), está Ana Costa, de 89 anos, que vive numa das residência­s partilhada­s para seniores providenci­adas pela Domus Social, no Bonfim (Porto). Tem a companhia de Fátima Vieira, de 82 anos, e de Estrela Pinto, de 91. Cada uma tem o seu espaço e as suas ocupações, mas garantem que se sentem menos sós assim. Em baixo, à direita, José Costa (em primeiro plano) e José Mota. Também vivem numa residência partilhada, mas na zona de Ramalde. Estão prestes a entrar na terceira idade e as circunstân­cias da vida deixaram-nos numa situação de emergência habitacion­al. Em baixo, à esquerda, Maria da Graça Sá, de 90 anos, que abriu as portas de casa a David Chico, estudante equatorian­o de 20 anos, ao abrigo do programa Aconchego. Várias formas de habitação colaborati­va que permitem aos mais velhos manter a autonomia e afastar o isolamento
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