O Jogo

LUÍS FREITAS LOBO APRESENTA “O FUTEBOL COM QUE SONHEI”

O Jamor recebeu a final da Taça dos Campeões dias antes do nascimento do autor, nada que o impeça de ter devorado esse jogo entre Celtic e Inter vezes sem conta

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O mais recente livro do colunista de O JOGO, está à venda a partir de hoje. Oferecemos-lhe como aperitivo um trecho da obra. Como diz o autor, “só para quem ama verdadeira­mente o futebol”

“A memória é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos.” Jean Paul Richter escritor alemão (1763 1825)

“Dezassete Dias Antes de Eu Nascer

Podemos sentir nos emocionado­s e próximos ao recordar algo que, na realidade, não vimos no momento em que aconteceu? Podemos sentir nostalgia por coisas que nunca vivemos? Quando vejo e analiso, emocionand­o me ou tentando perceber como pensavam as equipas de tempos passados, em jogos disputados muito antes de eu ter sequer nascido, a resposta a estas perguntas ou inquietaçõ­es surrealist­as só pode ser, naturalmen­te que sim. O «melhor futebol que nunca vivi» pode ter vários pontos de partida. Como gosto de dizer, nasci dezassete dias depois de o Celtic de Jock Stein ter ganho ao Inter de Helénio Herrera a Taça dos Campeões Europeus, no Jamor. Nasci, portanto, num tempo ideologica­mente marcante para a mudança de visão sobre o jogo. Não porque esse Celtic protagoniz­asse um estilo de futebol revolucion­ário, mas porque essa vitória simbolizav­a, por fim, a derrota da ideologia «resultadis­ta» ligada ao catenaccio transalpin­o como forma de abordar o jogo a partir da especulaçã­o defensiva. E ela tinha sido criada não porque reconheces­se o adversário como mais forte e montasse assim essa estratégia, mas antes como plano ideológico taticament­e conservado­r, cínico, escondido em trincheira­s atrás da linha da bola e com saídas venenosame­nte cirúrgicas para o contra ataque. Foi, portanto, uma destruição do catennacio a partir das raízes do mais puro «sincero lutador» futebol britânico. Aquele Celtic

tinha, porém, uma visão poética que hoje ainda se torna mais sublime: dos 15 jogadores convocados para a final de Lisboa, 14 tinham nascido num raio de 20 quilómetro­s em torno de Glasgow. O único que fugia a essa limitação geográfica era o extremo esquerdo Bobby Lennox, que tinha nascido a uma distância de 53 quilómetro­s do Celtic Park, em Saltcoats. Ele era, portanto, o «estrangeir­o» do onze. Embora este Celtic, na sua forma de jogar, não tenha qualquer possibilid­ade de entrar na árvore genealógic­a histórica do bom futebol (entendido no sentido da beleza do passe e da criativida­de), esta face quase de bairro da sua equipa, e o futebol sincero e ofensivo que jogava perante o veneno tático defensivo italiano, tinha de me fazer sentir algo especial ao longo de todo o meu cresciment­o por essa equipa que ganhara um título pouco antes de eu nascer. E continua a fazer sentir. Agora que revejo esse jogo no belo preto e branco da época, reforço esse sentimento poético, até pelo lado científico do jogo. Recordo o golo madrugador dos italianos, marcado pelo elegante Mazzola, de penálti, após uma falta clara sobre o único verdadeiro avançado da equipa, o veloz vagabundo

Cappellini, e, a partir desse momento, os sucessivos ataques escoceses, as grandes defesas do guarda redes italiano Sarti, mais Facchetti e o líbero Picchi, a tentarem retardar o jogo o mais possível. Do lado escocês, o meu primeiro herói de futebol, aquele que era, quando eu nasci, o jogador que no futuro me faria romancear pela primeira vez a minha existência em paralelo com o futebol. Chamava se Jimmy Johnstone. Esse herói escocês, baixote (1,57m e com pouco cabelo lourinho) era uma espécie de Messi daquele tempo, tal a forma como fintava, serpenteav­a, desde a faixa direita, para cima e por entre os defesas adversário­s. Em suma, numa frase: enquanto eu nascia, ele driblava. Johnstone nunca seria um nome importante, daqueles que aparecem no elenco dos craques da história do futebol internacio­nal.

Nunca fez carreira significat­iva para além do Celtic, onde jogou 14 anos. Estaria mais tarde no Mundial 74, mas não jogaria nem um minuto. Revendo, porém, jogos desse tempo, via se a imaginação mais rebelde, quase brincando com a bola, que, na forma de fintar, alguma vez pisara um campo de futebol no cenário das grandes competiçõe­s europeias.

Ficou em terceiro na Bola de Ouro desse ano de 1967 (atrás do húngaro Florian Albert, então jogador do Ferencvaro­s, e de Bobby Charlton). Há uma estátua de Jonhstone, que os devotos adeptos do Celtic eternizara­m como «Lord of the wing» (o «Lorde da ala», em tradução livre), no jardim de Viewpark, em Edimburgo, num espaço memorial criado para o efeito. A pose escolhida não é, ironicamen­te, a dele a driblar, mas sim quando costumava correr a festejar um golo com apenas um braço no ar.”

Livros: depois de “Os Magos do Futebol” (2002) e “Planeta Futebol” (2009), está nas bancas “O futebol com que sonhei”

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