O Jogo

O melhor golo que não foi

- Jacinto Lucas Pires

Depois daqueles noventa minutos algarvios de pura festa, daquele festival de bola que oferecemos à Lituânia na quinta-feira, veio-me à lembrança uma peça de David Mamet, “Glengarry Glen Ross”. Uma história sobre agentes imobiliári­os que não menciona sequer a palavra “futebol”. Será de eu estar a ensaiar uma peça e andar com teatro na cabeça, com certeza, mas é também porque a seleção vive um dilema parecido com o desses vendedores mametianos. Nessa história, também feita em filme, os funcionári­os da agência estão numa competição cerrada por sacar vendas. Primeiro, lutam entre eles para conseguir os melhores clientes e, depois, lutam com os clientes para fechar as vendas. No escritório, há uma tabela; quem ficar no topo ganha um Cadillac e quem ficar abaixo disso é despedido. Depois da goleada à Lituânia, a seleção já ganhou um bom cliente. Mas agora, atenção, falta fechar a venda.

É um facto, sim, que a Lituânia recuou muito, deu espaço que dava para convidar uma terceira seleção de onze marmanjos para se juntar à jogatana e futebolou com tanta cerimónia que nem conseguia despachar bolas óbvias das zonas de perigo… Mas nós também entrámos em campo com uma alegria, um ânimo raros. Seria sempre muito difícil pararem-nos. (E agora, cuidado, queridos leitores, que vem aí um clichê teatral…) Quando um encenador vê o ator fazer alguma coisa interessan­te nos ensaios, descobrir algo de verdadeiro sobre a personagem, manda a frase feita: “Guarda isso”. Apetece dizer o mesmo aos craques lusos. Talvez míster Santos, o nosso engenheiro-encenador, possa afixar o recado na porta do balneário. Qualquer coisa como: “Guardem isso” para o jogo de hoje com o Luxemburgo.

Desta vez não estou exagerar, pois não? Que bonito foi ver aquela malta de clubes diferentes, de estilos diferentes, com diferentes funções no relvado, em sintonia, numa concentraç­ão descontraí­da, a jazzar com bola. De repente, até Cristiano fazia assistênci­as — e não só assistênci­as, não meras “assistênci­as” estatístic­as, mas veros gestos artísticos, toques de inventar futebol. Lembram-se, caros amigos, daquele passe, daquela espécie de centro, que o madeirense galático fez com o ombro? Foi pena Paciência não ter acertado o pontapémoi­nho. Acho que o jovem ponta-de-lança se deu conta da grandiosid­ade do momento e que foi precisamen­te isso que lhe prendeu os gestos, fazendo com que a redondinha não acertasse o caminho para a baliza lituana. Seja como for — que beleza, que monumento ao futebol-arte. Hoje, com o Luxemburgo, temos de ser mais assim, não concordam? E chegaremos ao Euro de Cadillac.

Talvez míster Santos, o nosso engenheiro-encenador, possa afixar o recado na porta do balneário. Qualquer coisa como: “Guardem isso” para o jogo de hoje com o Luxemburgo Também entrámos em campo com uma alegria, um ânimo raros. Seria sempre muito difícil pararem-nos

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Descalço na Catedral

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