Cartão do Adepto: bom, mau ou vilão?
A s intenções por trás do Cartão do Adepto são nobres, mas a polémica adensa-se. Com esta medida, a Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto pretende responsabilizar adeptos que promovam incidentes de racismo, xenofobia e intolerância, condicionando o seu acesso e permanência em zonas com condições especiais - as chamadas ZCEAP, zonas geralmente associadas à presença de claques e destinadas à utilização de bandeiras, tarjas, instrumentos sonoros e outros acessórios -, e permitindo a verificação, em tempo útil, das decisões judiciais e administrativas que impeçam determinadas pessoas de aceder aos recintos desportivos. Na teoria, visa garantir a segurança e o bem-estar dos adeptos nos eventos desportivos das competições profissionais e eventos de risco elevado. Mas na prática, tanto os clubes como os adeptos contestam a medida. Alegam a estigmatização de grupos de adeptos, a separação de famílias que queiram assistir a um jogo no estádio, bem como a limitação da expressão, da liberdade e da privacidade dos adeptos. A controvérsia em torno da medida não é novidade, e ditou até a sua revogação noutros países. Onde tenha sido implementado, o sistema foi considerado desnecessariamente intrusivo, pouco prático, e porventura mais importante – ineficaz na promoção da segurança dentro dos estádios. Em Inglaterra, por exemplo, o cartão do adepto foi imposto pelo Governo de Thatcher no final dos anos 80. Com a tragédia de Hillsborough em abril de 1989, a decisão foi repensada. A investigação do incidente concluiu que o cartão do adepto era inadequado, ineficaz e até propenso a aumentar incidentes de “hooliganismo”. O mesmo se passou na Dinamarca mais recentemente. O lançamento do cartão do adepto em 2012 foi de imediato seguido por uma campanha de contestação coordenada da associação nacional de adeptos, que incluiu boicotes aos estádios por grupos “ultra”. Nos países em que a experiência passou da fase embrionária, como a Bélgica e a Polónia, ainda assim a medida não ficou para durar devido à queda das audiências nos estádios que resultou da sua implementação. Os números não mentem. O Relatório de Análise da Violência em Contexto Desportivo aponta que, durante a época 2019-20, se registaram 1.577 incidentes em competições futebolísticas – 91% do total de incidentes no desporto -, e que o incitamento à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância foi o principal motivo para as sanções aplicadas. Algo tem de ser feito para que assistir ao espetáculo do futebol seja uma experiência segura e cómoda, isso é certo. Contudo, é também certo que o cartão do adepto, como está neste momento a ser aplicado, tem as suas limitações. Se por um lado se procura trazer os adeptos de volta ao estádio depois de um ano sem audiências, por outro criam-se barreiras adicionais à presença nos recintos pela exigência de mais cartões e registos, que colocam em todos os adeptos o ónus da adesão a uma medida que visa prevenir comportamentos violentos perpetrados por apenas alguns. O cartão do adepto não é uma bala de prata – tal não se exigiria a qualquer outra medida numa fase tão recente da sua aplicação. E pode alegar-se que é um passo no sentido de promover o futebol positivo em Portugal. Mas levanta uma questão que não pode ser ignorada: não se deveria apostar no controlo efetivo dos prevaricadores, sob o prejuízo de se estar a antagonizar o adepto com quem contamos para revitalizar o futebol neste período de retoma que agora se inicia?