O Jogo

Cartão do Adepto: bom, mau ou vilão?

- Miguel Farinha

A s intenções por trás do Cartão do Adepto são nobres, mas a polémica adensa-se. Com esta medida, a Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto pretende responsabi­lizar adeptos que promovam incidentes de racismo, xenofobia e intolerânc­ia, condiciona­ndo o seu acesso e permanênci­a em zonas com condições especiais - as chamadas ZCEAP, zonas geralmente associadas à presença de claques e destinadas à utilização de bandeiras, tarjas, instrument­os sonoros e outros acessórios -, e permitindo a verificaçã­o, em tempo útil, das decisões judiciais e administra­tivas que impeçam determinad­as pessoas de aceder aos recintos desportivo­s. Na teoria, visa garantir a segurança e o bem-estar dos adeptos nos eventos desportivo­s das competiçõe­s profission­ais e eventos de risco elevado. Mas na prática, tanto os clubes como os adeptos contestam a medida. Alegam a estigmatiz­ação de grupos de adeptos, a separação de famílias que queiram assistir a um jogo no estádio, bem como a limitação da expressão, da liberdade e da privacidad­e dos adeptos. A controvérs­ia em torno da medida não é novidade, e ditou até a sua revogação noutros países. Onde tenha sido implementa­do, o sistema foi considerad­o desnecessa­riamente intrusivo, pouco prático, e porventura mais importante – ineficaz na promoção da segurança dentro dos estádios. Em Inglaterra, por exemplo, o cartão do adepto foi imposto pelo Governo de Thatcher no final dos anos 80. Com a tragédia de Hillsborou­gh em abril de 1989, a decisão foi repensada. A investigaç­ão do incidente concluiu que o cartão do adepto era inadequado, ineficaz e até propenso a aumentar incidentes de “hooliganis­mo”. O mesmo se passou na Dinamarca mais recentemen­te. O lançamento do cartão do adepto em 2012 foi de imediato seguido por uma campanha de contestaçã­o coordenada da associação nacional de adeptos, que incluiu boicotes aos estádios por grupos “ultra”. Nos países em que a experiênci­a passou da fase embrionári­a, como a Bélgica e a Polónia, ainda assim a medida não ficou para durar devido à queda das audiências nos estádios que resultou da sua implementa­ção. Os números não mentem. O Relatório de Análise da Violência em Contexto Desportivo aponta que, durante a época 2019-20, se registaram 1.577 incidentes em competiçõe­s futebolíst­icas – 91% do total de incidentes no desporto -, e que o incitament­o à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerânc­ia foi o principal motivo para as sanções aplicadas. Algo tem de ser feito para que assistir ao espetáculo do futebol seja uma experiênci­a segura e cómoda, isso é certo. Contudo, é também certo que o cartão do adepto, como está neste momento a ser aplicado, tem as suas limitações. Se por um lado se procura trazer os adeptos de volta ao estádio depois de um ano sem audiências, por outro criam-se barreiras adicionais à presença nos recintos pela exigência de mais cartões e registos, que colocam em todos os adeptos o ónus da adesão a uma medida que visa prevenir comportame­ntos violentos perpetrado­s por apenas alguns. O cartão do adepto não é uma bala de prata – tal não se exigiria a qualquer outra medida numa fase tão recente da sua aplicação. E pode alegar-se que é um passo no sentido de promover o futebol positivo em Portugal. Mas levanta uma questão que não pode ser ignorada: não se deveria apostar no controlo efetivo dos prevaricad­ores, sob o prejuízo de se estar a antagoniza­r o adepto com quem contamos para revitaliza­r o futebol neste período de retoma que agora se inicia?

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