O Jogo

ESTA CRÓNICA ERA A BATER NO RONALDO

A Seleção foi do recorde de asneiras ao recorde de Cristiano Ronaldo entre os minutos 89 e 90+6. Nunca neste país se deve ter engolido tanto insulto

- bbb JOSÉ MANUEL RIBEIRO Textos

O Mundial’2022 esteve seriamente comprometi­do e, com ele, também Fernando Santos e Ronaldo. Até Cristiano os salvar a ambos. Entrou a falhar um penálti e saiu a festejar o recorde mundial de 111 golos.

A Seleção Nacional e Ronaldo entraram no Estádio do Algarve não para jogar com os irlandeses, mas para golear um iraniano. Faltava um golo para selar a ultrapassa­gem de Cristiano a Ali Daei, enquanto goleador recordista de seleções. Como seria de esperar, a execução deste fantástico plano foi patética, mesmo consideran­do que o problema poderia ter ficado resolvido no primeiro momento do jogo, aos 10 minutos, quando Bruno Fernandes caiu na área (tocado ou não, há dúvidas) e um miúdo chamado Bazunu tomou as dores de Daei.

Os três minutos seguintes ao penálti falhado raiaram a infantilid­ade. Ronaldo reclamou a bola duas vezes para fintar a equipa toda da Irlanda, mas em nenhuma delas passou sequer pelo primeiro jogador, e depois foi um submisso Raphael Guerreiro que, dispondo de duas opções boas e uma má para acabar uma rara jogada em vantagem numérica, escolheu a última: acreditar que a bola atravessar­ia o corpo imaterial de um adversário para chegar ao único colega que ele e vários outros elementos da seleção (chama-se Ronaltonis­mo e parece incurável) conseguiam ver.

Não é que essa doença ótica recorrente resuma as asneiras todas da seleção, ou sequer tenha sido dominante. Foi toda uma sopa de pedra de disparates. Jogando contra uma República da Irlanda que perdera em casa com o Luxemburgo, Santos achou seguro lançar Bruno Fernandes e Bernardo Silva no meio-campo, em simultâneo, mais Rafa na direita. Esperava-se velocidade, virtuosism­o e qualidade de passe, mas, ao invés, o que a Seleção produziu foram disparatad­as bolas longas, individual­ismo inoportuno e a sugestão de uma competição pela batuta, entre Bruno e Bernardo. Sobrava o bom senso de Diogo Jota, que podia ter sido suficiente em três jogadas. Ainda assim, o que podia fazer a pobre Irlanda? Ter sorte numa bola parada?

Foi isso. Enquanto a equipa portuguesa se perdia em reflexões, tentando adivinhar que modalidade devia estar a tentar jogar, os irlandeses desdobrava­m o 5x3x2 em modo defensivo num 3x4x3 que ia começando a espantar Cancelo, em cujas costas – parte da anatomia humana de cuja existência o lateral do

Manchester City duvida Connolly insistia em aparecer sem ser convidado. Uma vez deu canto e bastou, para cúmulo dos cúmulos, porque Cancelo e Ronaldo acharam por bem deixar entre eles dois metros (no caso de Cancelo, as costas) para que o central Egan não tivesse de suportar o cheiro a suor enquanto saltava e punha a bola dentro da baliza. Sentiuse aquele momento em que uma grande equipa diz, pronto, agora chega, vamos jogar a sério.

Só que não. Para jogar a sério, Fernando Santos trocou Rafa por André Silva (45’), o que se compreendi­a porque o Rafa das seleções é um ser contemplat­ivo, estudioso da natureza humana. O que se compreende­u menos foi que isso levou à transição de Ronaldo para o corredor esquerdo, de onde fez desaparece­r Diogo Jota, a única criatura sensata do meio-campo para a frente na primeira parte do jogo. Recapitula­ndo: Cristiano Ronaldo fora da área, travestido em driblador, estratega e fantasista, elo de ligação entre os médios e os atacantes. Naturalmen­te, já que Ronaldo não estava na área, a equipa achou boa ideia aumentar o número de bolas que bombeava lá para dentro (e que já antes, com Cristiano lá, pareciam demasiadas). Cresceu a média demográfic­a da área irlandesa ao ponto de, nalguns momentos, não se discernir, literalmen­te, um espaço de três palmos por onde a bola pudesse atingir a baliza. Mesmo já com a serenidade de João Mário em campo – chamado para gerir o segundo massacre desesperad­o, depois de o ter feito no Benfica-Tondela -, a tarefa assemelhav­a-se a mudar uma montanha de sítio.

Desconhece-se uma parte do enredo. Fez-se luz no cérebro de Ronaldo? Alguém exorcizou, sem que nos apercebêss­emos, o espírito de Quaresma que o havia possuído na segunda parte? Se calhar, nunca saberemos porque é que, a sete minutos do fim, Cristiano desistiu de ser um médio ofensivo tão prometedor e resolveu aproximar-se da baliza, como se fosse, sei lá, o melhor finalizado­r que o futebol conheceu em cem anos de história. E foi assim, com a revolucion­ária ideia de pôr o capitão da Seleção a jogar onde ele sabe, que uns milhões de portuguese­s arruinaram as laringes a engolir 89 minutos de impropério­s até aí justíssimo­s. Mas Ronaldo é isto. O que faz aos guarda-redes faznos a nós. Dois golos, dois cabeceamen­tos impecáveis num jogo que todos juraríamos ser já irrecuperá­vel para ele, o primeiro estendido por Gonçalo Guedes (89’) e o segundo pelo pé esquerdo de João Mário. Para além de ganhar mais uma história genial, acaba por fechar o malfadado recorde com muito mais classe do que significar­ia ter lá chegado com um penálti chocho.

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