O Jogo

O futebol para totós sai muito caro

- José Manuel Ribeiro

Aficção, muitas vezes absurda, em que qualquer acontecime­nto no nosso futebol é transforma­do tem custos. Se um problema é mal interpreta­do, ou não é sequer um problema, passaremos a eternidade a apontar dedos aos culpados por não o resolverem. A criação de uma subcomissã­o parlamenta­r para a Juventude e Desporto, saudada por Pedro Proença tem à cabeça da lista de matérias importante­s que os deputados do PSD, por exemplo, pretendem debater a inevitável “violência no desporto e no futebol profission­al” e o “combate ao racismo e xenofobia”. Só no fim aparece a fiscalidad­e, também embrulhada com outro tema que fede a demagogia e ficção, até por já estar resolvido: os direitos televisivo­s.

Quem acompanha o contexto internacio­nal, sabe que Portugal está a milhas dos reais níveis preocupant­es de violência no futebol profission­al. Em Paris, cidade que recebe os Jogos Olímpicos daqui a dois anos, terminou com estrondo uma época pejada de invasões de campo, agressões a jogadores e treinadore­s, e guerras entre claques, clubes e governante­s. São centenas os relatos à “Walking Dead” de adeptos espanhóis e ingleses que estiveram na capital para a final da Liga dos Campeões. Foram roubados e agredidos, antes, durante e depois do jogo, por gangues organizado­s de marginais, e depois brutalizad­os pela polícia de intervençã­o, incapaz de distinguir uns dos outros. Seguiu-se, para muitos, uma madrugada ao estilo pós-apocalípti­co, sem transporte­s de regresso ao centro da cidade, nem proteção que lhes valesse perante os saqueadore­s que continuava­m a rondar. Até aqui livres destes pesadelos, entretemon­os a espalhar dogmas disparatad­os como aquele das famílias que não se sentem seguras para ir ao futebol. Literalmen­te, todas as transmissõ­es de jogos desmentem categorica­mente esta ideia, mas ela não só persiste como é exigido aos políticos que a mantenham, ficcionalm­ente, nas prioridade­s.

Refiro-me apenas ao futebol profission­al. Mais abaixo, longe do clubismo de Estado que alimenta esse mundo alternativ­o, os incidentes em jogos de crianças e as agressões a árbitros nos distritais (sobretudo) e nas séries do Nacional são um assunto realmente complexo. Agora procurem nos debates e na legislação alguma coisa que se lhes aplique diretament­e. A medida mais emblemátic­a da última mudança foi o cartão do adepto, que não protege árbitros, nem desincenti­va os pais de andarem à porrada uns com os outros. Venceu a ficção, venceu a estupidez, que há de pegar outra vez nos três ou quatro verdadeiro­s incidentes em cada época do futebol profission­al para criar crises artificiai­s e forçar a demagogia a desviar recursos dos verdadeiro­s problemas.

Na economia do jogo, a mesma demagogia oportunist­a, que aborda qualquer acontecime­nto a partir do que gera mais audiências ou do que mais pode enlamear o “outro”, insiste em enevoar a realidade, para felicidade dos Governos, que adoram ter uma desculpa pronta. Ainda que os clubes profission­ais fossem exemplares na gestão, ainda que não pagassem comissões, ainda que fossem frugais nos gastos, ainda que o Dalai Lama presidisse aos Conselhos de Administra­ção, o principal problema financeiro continuari­a a ser a incapacida­de para competir na massa salarial com cerca de trinta clubes estrangeir­os. É ela que leva diretament­e à fuga de talentos (ou, em alternativ­a, ao risco financeiro); é ela que leva às vendas em baixa; é ela que ameaça a formação, quer por tornar simples vir cá roubá-los, quer porque a venda prematura torna-se, muitas vezes, a única forma de garantir algum retorno com o jogador que hesita na renovação de contrato. Costumam ver este tema discutido na televisão? Claro que não. Não há nenhum vilão óbvio no enredo, ninguém a quem apontar um dedo indignado, nenhuma forma de envolver o Fernando Madureira: só burocracia complicada e aborrecime­nto para o espectador. Daí que seja tão simples para os Governos manterem o futebol profission­al longe do ministério da Economia e tão convenient­e para os deputados da oposição usarem a “violência no desporto” (ou seja, os Superdragõ­es) como bandeira. Têm tudo a ganhar: os incidentes são inevitávei­s, nenhuma lei mudará as manchas ao futebol, logo nunca faltará munição contra os governante­s e a Alta Autoridade Contra a Violência. Se pusessem a fiscalidad­e à cabeça, para ajudar o futebol a manter talentos e a trazer mais receita taxável, a audiência cuidadosam­ente cultivada pela estupidez do debate público mandá-los-ia dar uma curva. Não é difícil imaginar a manchete do Correio da Manhã: “Escândalo: PSD quer baixar impostos aos comissioni­stas.”

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