O futebol para totós sai muito caro
Aficção, muitas vezes absurda, em que qualquer acontecimento no nosso futebol é transformado tem custos. Se um problema é mal interpretado, ou não é sequer um problema, passaremos a eternidade a apontar dedos aos culpados por não o resolverem. A criação de uma subcomissão parlamentar para a Juventude e Desporto, saudada por Pedro Proença tem à cabeça da lista de matérias importantes que os deputados do PSD, por exemplo, pretendem debater a inevitável “violência no desporto e no futebol profissional” e o “combate ao racismo e xenofobia”. Só no fim aparece a fiscalidade, também embrulhada com outro tema que fede a demagogia e ficção, até por já estar resolvido: os direitos televisivos.
Quem acompanha o contexto internacional, sabe que Portugal está a milhas dos reais níveis preocupantes de violência no futebol profissional. Em Paris, cidade que recebe os Jogos Olímpicos daqui a dois anos, terminou com estrondo uma época pejada de invasões de campo, agressões a jogadores e treinadores, e guerras entre claques, clubes e governantes. São centenas os relatos à “Walking Dead” de adeptos espanhóis e ingleses que estiveram na capital para a final da Liga dos Campeões. Foram roubados e agredidos, antes, durante e depois do jogo, por gangues organizados de marginais, e depois brutalizados pela polícia de intervenção, incapaz de distinguir uns dos outros. Seguiu-se, para muitos, uma madrugada ao estilo pós-apocalíptico, sem transportes de regresso ao centro da cidade, nem proteção que lhes valesse perante os saqueadores que continuavam a rondar. Até aqui livres destes pesadelos, entretemonos a espalhar dogmas disparatados como aquele das famílias que não se sentem seguras para ir ao futebol. Literalmente, todas as transmissões de jogos desmentem categoricamente esta ideia, mas ela não só persiste como é exigido aos políticos que a mantenham, ficcionalmente, nas prioridades.
Refiro-me apenas ao futebol profissional. Mais abaixo, longe do clubismo de Estado que alimenta esse mundo alternativo, os incidentes em jogos de crianças e as agressões a árbitros nos distritais (sobretudo) e nas séries do Nacional são um assunto realmente complexo. Agora procurem nos debates e na legislação alguma coisa que se lhes aplique diretamente. A medida mais emblemática da última mudança foi o cartão do adepto, que não protege árbitros, nem desincentiva os pais de andarem à porrada uns com os outros. Venceu a ficção, venceu a estupidez, que há de pegar outra vez nos três ou quatro verdadeiros incidentes em cada época do futebol profissional para criar crises artificiais e forçar a demagogia a desviar recursos dos verdadeiros problemas.
Na economia do jogo, a mesma demagogia oportunista, que aborda qualquer acontecimento a partir do que gera mais audiências ou do que mais pode enlamear o “outro”, insiste em enevoar a realidade, para felicidade dos Governos, que adoram ter uma desculpa pronta. Ainda que os clubes profissionais fossem exemplares na gestão, ainda que não pagassem comissões, ainda que fossem frugais nos gastos, ainda que o Dalai Lama presidisse aos Conselhos de Administração, o principal problema financeiro continuaria a ser a incapacidade para competir na massa salarial com cerca de trinta clubes estrangeiros. É ela que leva diretamente à fuga de talentos (ou, em alternativa, ao risco financeiro); é ela que leva às vendas em baixa; é ela que ameaça a formação, quer por tornar simples vir cá roubá-los, quer porque a venda prematura torna-se, muitas vezes, a única forma de garantir algum retorno com o jogador que hesita na renovação de contrato. Costumam ver este tema discutido na televisão? Claro que não. Não há nenhum vilão óbvio no enredo, ninguém a quem apontar um dedo indignado, nenhuma forma de envolver o Fernando Madureira: só burocracia complicada e aborrecimento para o espectador. Daí que seja tão simples para os Governos manterem o futebol profissional longe do ministério da Economia e tão conveniente para os deputados da oposição usarem a “violência no desporto” (ou seja, os Superdragões) como bandeira. Têm tudo a ganhar: os incidentes são inevitáveis, nenhuma lei mudará as manchas ao futebol, logo nunca faltará munição contra os governantes e a Alta Autoridade Contra a Violência. Se pusessem a fiscalidade à cabeça, para ajudar o futebol a manter talentos e a trazer mais receita taxável, a audiência cuidadosamente cultivada pela estupidez do debate público mandá-los-ia dar uma curva. Não é difícil imaginar a manchete do Correio da Manhã: “Escândalo: PSD quer baixar impostos aos comissionistas.”