A Realpolitik do Real Madrid em Paris
ACarlos Tê
final da Liga dos Campeões borrou a pintura da UEFA. As televisões afadigavamse a reportar o impensável e um casal vindo da Grécia exibia resignadamente os bilhetes por nem conseguir chegar perto dos portões. Pior estavam as centenas de almas lacrimejantes que a polícia tentava dispersar à bastonada.
Ninguém contava com uma romaria tão grande nem com a escala industrial de falsificação de bilhetes. O esquema de segurança também não deu pelas movimentações que os locais prepararam para o fim do jogo. Paddy Pimblet, lutador de UFC e adepto do Liverpool, escapou a trinta meliantes armados com machetes, facas e barras de ferro. O grupo actuou nas redondezas do Stade de France obrigando os adeptos a deitar-se no chão para os aliviar das carteiras e dos relógios.
O ministro francês responsável pela organização culpou os adeptos britânicos e justificou as falhas com os três meses para planear o evento, quando seria preciso um ano, no mínimo. As desculpas chegaram três dias depois, com promessas de apuramento de responsabilidades. O primeiro erro pode ter sido a escolha de Paris, pela UEFA, para substituir São Petersburgo. O campeonato francês registou desacatos, invasões, ataques a jogadores, como o que ocorreu após o play-off entre Auxerre e St. Etienne, nessa mesma tarde, ou até insultos a jogadores mortos, como o argentino Emiliano Sala. França parece ser hoje o ventre dum malestar social que projecta sinais no futebol.
Talvez as autoridades gaulesas devessem ter-se aconselhado com as suas congéneres portuguesas. O Porto também teve pouco tempo para organizar a final de 2021 – agendada para
Istambul e caída de páraquedas por causa dos então célebres corredores vermelhos do Covid. A cidade afligiu-se com a tarefa de lidar com os milhares de ingleses sem bilhete que assistiram, em fanzones, ao City-Chelsea, deixando um rasto elefantino que, comparado com o de Paris, foi um passeio no parque. Imagine-se o trauma que teria sido para a melindrosa alma lusitana ter havido a norte uma balbúrdia deste quilate.
Aliás, terá sido o relativo êxito da final de 2021 que levou a UEFA a convidar Brandão Rodrigues para dirigir o inquérito ao salsifré parisiense. Estamos fadados a ver coisas do arco da velha: pandemias, guerras em directo, atrasos numa final de Champions, um exministro português da Educação apurando a água metida por franceses e ingleses – depois de o sindicato de professores o ter acusado de meter água na anterior legislatura. Sem esquecer a especialidade da casa: comissões de inquérito.
No fim, nem o atraso embaraçoso perturbou a cerimónia de abertura, a cargo de Camila Cabello. A UEFA tem o sonho de ultrapassar o espectáculo total do Super Bowl. Se o futebol não coloniza a América, a América coloniza o futebol. A América vai fazendo compras, como Chelsea e Milão. Em breve haverá lantejoulas e jorros de néon nos grandes jogos. Novidade, só o Real Madrid rendendo-se ao contraataque para facturar mais uma taça. A Realpolitik contagiou os merengues.
Estamos fadados a ver coisas do arco da velha, como um ex-ministro português a apurar a água metida por franceses e ingleses, ele próprio acusado de meter água
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães