O Jogo

Quem nos defende do defeso?

- Álvaro Magalhães O autor optou por escrever na ortografia antiga

Privado da outra vida (anímica, irracional) que o futebol propicia, um adepto sofre muito para atravessar o defeso. O que fazer? Para onde olhar? Para saber quem parte e quem chega ao seu clube, que é o único jogo disponível, esse adepto carente dispõe-se mesmo a ver aqueles programas televisivo­s sobre o mercado, onde a conversa de chacha pode atingir níveis estratosfé­ricos. E se esse adepto estiver tão desorienta­do que vá parar à CMTV ainda tem ao dispor legendas tão graciosas e distintas como estas: «Senhora Cebolinha arrasa Benfica»; «Prato do dia: Pinto à Mendelhões»; «Braz de boné traz Neres a pé».

A alternativ­a a estes programas não é melhor: reportagen­s sobre as mansões luxuosas onde os craques passam férias, a coreografi­a da família de Ronaldo no Tik-Tok ou uma quadra são-joanina de Vítor Baía: «E só o Porto é Campeão. / Todos falam e ninguém gosta. / Levam com o Conceição. / O Macaco e o Pinto da Costa.» Não reparem na ausência de graça estilístic­a, pois o que interessa é a mensagem. E essa é: «Podem contar comigo, no pós-Pinto da Costa, para garantir que nada muda e todos continuam bem instalados nos seus galhos».

Se o adepto preferir algo mais ligeiro pode entreter-se com um vídeo onde Bruno Fernandes grita para Alex Telles, que estava a filmar no Centro de Estágio do Manchester: «Isto é para jogar futebol!» Alex ter-lhe-à respondido: «Então, porque não jogas?» (esta resposta foi inventada, para melhorar a cena, que estava um bocado insípida). Outra opção, igualmente enfadonha, é ouvir Jorge Jesus a falar turco, o que ainda soa pior do que o português esforçado que ele usou para nos dizer que foi para o Fenerbahçe por lá o quererem muito, ou seja, por amor. Os 6.5 milhões/ano que vai ganhar, digo eu, é apenas o preço a que está o amor na Turquia.

Sendo, porém, o caso desse adepto preferir algo mais substantiv­o pode virar-se para o conflito de Fernando Santos com a Autoridade Tributária. O processo mostra que o selecciona­dor montou uma táctica para fugir aos impostos (o desporto favorito da gente da bola) tão deficiente como a que montou para o jogo de Portugal na Suíça. Foi assim: a FPF pagou-lhe 10 milhões, em dois anos, através de uma empresa (dele, pois claro), mas Santos só declarou um salário de 5 mil euros por mês (70.000 euros/ano). Em sua defesa, explicou ao juiz que é mais do que um treinador, é um gestor. E como é mais do que um treinador, digo eu, ganha muito menos do que um treinador. Perceberam?

Nem eu. É gestor e ganha (para efeitos de IRS) como se fosse um roupeiro. Como a táctica era paradoxal, ou seja, bastante fraca, parece que também vai perder este jogo e pagar ao Fisco 4.5 milhões. Nada de mais para «um patriota que quer servir o país» (palavras dele, na audiência de julgamento). Sim, este é mais um caso de desapego ao dinheiro, do mais refinado amor (ao Fenerbahçe, no caso de Jorge Jesus, à pátria no caso de Fernando Santos).

Tudo isto e muito mais espera um adepto que busca algum consolo ou distracção na actualidad­e futebolíst­ica. E pensar que ainda agora começou a travessia. Quem nos defende do defeso?

Para saber quem parte e quem chega ao seu clube, o adepto carente dispõe-se a ouvir programas televisivo­s sobre o mercado, onde a conversa de chacha pode ser estratosfé­rica

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Jorge Jesus e o Fenerbahçe, uma história de amor e de 6,5 milhões por ano

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