Será que ele consegue?
Álvaro Magalhães
Apropósito do muito falado incidente do rapazinho que teve de despir a camisola do Benfica em Famalicão, Pedro Proença revelou o grande propósito da Liga a que preside: promover o regresso do futebol de festa para as famílias. A sério? Uma festa pacífica e segura, como uma visita ao Zoológico ou ao Planetário? Penso em tal missão e não consigo imaginar nada mais difícil. Será, talvez, como convencer um leão a ser vegetariano, o que é um atentado à sua natureza. Um entretenimento familiar também choca de frente com a natureza do futebol. Aliás, basta imaginar a utopia de Proença para se perceber como ela é frágil, mesmo risível: adeptos das duas equipas juntos, convivendo pacificamente, sem serem afectados, ou alterados, pelo que passa no campo (e não se esqueçam da música de violinos).
Uma pessoa esclarecida, que conheça o jogo, a sua natureza, a sua história, fica a pensar: de que futebol está a falar o presidente da Liga? E de que regresso? Esse futebol festivo e seguro, versão familiar, já existiu? Não. O que existe é uma história sangrenta e infame com mais de cem anos. A violência sempre fez parte do jogo, como um inextirpável tumor maligno, é o preço que temos de pagar por tanta vida irracional e tão grande fulgor sentimental.
O futebol, como dizia Javier Marias, é uma mistura de sentimentalismo e selvajaria. Daí que a violência esteja sempre latente, podendo irromper a qualquer momento. E digam lá qual é a festa para as famílias em que a Polícia escolta os espectadores, obrigando-os a avançar em caixas que os isolam do resto do mundo, ou seja, tratandoos como se fossem potenciais criminosos? Aliás a
Polícia não classifica estes eventos como festas, mas como «jogos de alto risco». E agora, pergunto: se a Polícia separa os adeptos (e a a UEFA e a FIFA, até nos seus regulamentos), para prevenir a irrupção dessa violência sempre latente, só em Famalicão, esse oásis de paz, é que eles devem conviver amavelmente na mesma bancada, como toda a gente defendeu esta semana?
Para fazer do futebol uma festa pacífica e segura para as famílias seria preciso destrui-lo metodicamente até ele ser apenas uma coisa sem importância, daquelas que não aquecem nem arrefecem. Uma espécie de futebol sem futebol. Será nisso que Proença está a pensar, que, assim como há café sem cafeína, gin e vodka sem álcool, também pode haver o futebol sem futebol?
Claro que temos a obrigação de lutar com ideias e armas para reduzir os efeitos nefastos dessa zona de sombra, mas com noção da realidade, não com tretas politicamente correctas ou com a ingenuidade (ou será a arrogância?) de se pensar que é possível transformar o que é todo um mundo de desrazão e irracionalidade num aprazível e festivo evento familiar. Quem for capaz de tamanha proeza, também está apto para acabar com as guerras e apaziguar o mundo, reduzindo-o à exclusiva expressão da bondade e do amor. Mas, quem sabe?, talvez Pedro Proença seja homem para tratar disso tudo. Sem pressas, claro. Jogo a jogo, como se diz. Primeiro, o futebol. Depois, o mundo.
Basta imaginar a utopia de Proença para se perceber como ela é frágil, mesmo risível: adeptos das duas equipas juntos, convivendo pacificamente
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães