Jornalismo cor de burro quando foge
Opior jornalismo, amplamente dominante, sobretudo nos canais de televisão, abateuse sem piedade sobre este Mundial. São horas e horas de um discurso informativo acrítico, feito de matérias fúteis e voláteis, irrelevantes. A toda a hora e em todos os canais há debates inócuos sobre a melhor estratégia e o onze ideal, excitantes directos das traseiras do autocarro onde viajam os jogadores e, claro, há a praga dos enviados especiais, que falam e falam sem nada terem a dizer. «A esta hora, os jogadores devem estar a almoçar», dizia um desses, com ar infeliz, à porta de um hotel. Ainda assim, tropeçam na gramática. Nuno Luz, da SIC, elucidou-nos sobre o “colonismo inglês” e mostrou-nos “alguém que teve Portugal a apoiar-lhe”. O Pepe também tem um conflito com os tempos verbais (“Se a gente fazer o que o mister mandar...”, disse ele), mas é um futebolista, são os seus pés e a sua cabeça que “falam”, o jornalista tem a língua como instrumento de trabalho. Esta apoteose do nada segue nas declarações de jogadores, que só dizem que estão focados e o grupo coeso; e nas dos seleccionadores, que não vão mais além. Já ouvi de alguns, neste Mundial, que “o jogo é onze contra onze”. E houve um que foi ainda mais longe no seu raciocínio e disse que “o jogo começa zero-zero”. Extraordinário.
Mas o grande baluarte deste jornalismo é o ronaldismo, que é um culto acéfalo a Ronaldo. Diz o primeiro mandamento do culto que ele é sempre notícia, mesmo quando não é notícia. Se mandar fazer uma marquise, por exemplo, temos capas de jornais e amplos debates. As tontices que a mulher e as irmãs publicam no Instagram também são notícia. Esta banalização do gosto e dos discursos é a base deste jornalismo cor-de-rosa, que, até há pouco, era um exclusivo do chamado «jet set» e agora está em toda a parte.
Assim, não admira que toda a informação relativa à Selecção girasse à volta de Ronaldo. No jogo com a Suíça, o assunto era a sua estadia no banco, ou seja, o não-jogo. Estes adoradores viveram do mito Ronaldo durante anos e anos. Agora, que ele se inclina, apaixonadamente, para a sua própria imagem, como Narciso, e vai afogar-se, morrer, eles ali estão, para descreverem, com igual excitação, cada momento do desastre.
Este jornalismo, que já não é cor-de-rosa, mas cor de burro quando foge, não é exclusivo do futebol. Com algumas excepções, que são focos isolados de resistência, está por todo o lado, é o resultado da alteração radical dos hábitos de consumo e da emergência das novas plataformas. Para sobreviver, o jornalismo dispôs-se a surfar a onda de frivolidade que varre o mundo. Foi uma rendição e, infelizmente, não é caso único. Ergue-se por todo o lado o monstruoso edifício da simplificação e do facilitismo, enquanto se legitima a estupidez e a tontice. Dos paradigmas da concentração, preocupação, contração, passou-se aos da relaxação, distração, dissipação. E a figura do pensador de Rodin, paradigma de uma época, deu lugar à de Homer Simpson sentado num sofá com uma cerveja na mão, a ver televisão (o Mundial do Catar, por exemplo).
A toda a hora e em todos os canais há debates inócuos sobre a melhor estratégia e o onze ideal, excitantes directos das traseiras do autocarro. E, claro, a praga dos enviados especiais