Se uma nave extraterrestre...
Afinal do Mundial do Catar foi vista por cerca de 1,5 mil milhões de pessoas; mas o conjunto de jogos do Mundial cativou cerca de 4 mil milhões de pessoas espalhadas pelo globo terrestre, o que corresponde a metade da população mundial. Assombroso, realmente. Quando disseram ao escritor George Steiner um número parecido, relativo à final de um Mundial passado, ele perguntou, preocupado: “E se eles se lembram de ir todos ao mesmo tempo ao quarto de banho, no intervalo? Será que o mundo está preparado para isso?” Sim, será que está? Certa vez, no Uruguai, houve um pequeno sismo por tantos terem saltado ao mesmo tempo, festejando um golo num Mundial. Pensei nisso quando vi aquela multidão enlouquecida pela alegria que se reuniu à volta de um obelisco, em Buenos Aires.
Há ainda outros números, igualmente assombrosos, que nos dão conta deste envolvimento global. O segundo golo do francês Mbappé, que restabeleceu o empate (2-2) gerou 24.400 tweets por segundo no Twitter. Durante o jogo, esta rede registou o maior tráfego da sua história, que tem 25 anos. Dizem eles que foi como se o mundo inteiro estivesse a pesquisar sobre a mesma coisa. Nenhum outro acontecimento planetário envolveu e
animou tantos terráqueos, essa criaturas estranhas que põem o futebol acima de qualquer outra coisa. Se uma nave extraterrestre nos estivesse a observar, haveria de concluir que aquele jogo em que 22 criaturas disputam uma bola era a cerimónia mais importante e mais definidora da nossa civilização. E lá iam eles à procura do significado profundo daquele estranho ritual.
O futebol, que tem pouco mais de cem anos de existência, considerando
apenas a sua versão moderna, que começou em 1863, aninhou-se definitivamente no coração dos homens e aí criou raízes que não param de se fortalecer e expandir. E o segredo dessa relação de sucesso explicase bem: o futebol dirige-se à nossa irracionalidade e anima zonas da nossa constituição que a cultura despreza e recalca, devolvendo-nos a nossa (perdida) naturalidade. Na verdade, ele celebra vibrantemente a nossa herança animal, pondo-a ao seu serviço. Embora gostemos de pensar em nós como anjos caídos do céu, não passamos de «uma espécie avançada de símios», como nos definiu Stephen Hawking; e, por isso, continuamos a ser definidos e regidos pelos mesmos instintos dos nossos irmãos irracionais. Já não somos primitivos, mas ainda não somos sábios. Estamos algures no meio desse caminho,
oscilando perigosamente entre duas diferentes motivações vitais, a racional, que gera a civilização, a cultura, e a irracional, que é permanentemente recalcada, o que faz de nós criaturas em perigo: instáveis, tensas, inseguras.
Felizmente, existe o futebol, que faz o trabalho contrário e nos liga a essa outra natureza mais primitiva, concedendo-nos a alegria (e a tristeza, claro) de uma outra vida: anímica, irracional. E sabe-se que ficamos mais apaziguados, harmonizados e, vá lá, mais felizes quando somos fiéis à nossa natureza.
O futebol, que tem pouco mais de cem anos, aninhou-se no coração dos homens e aí criou raízes. O segredo do sucesso é ele dirigir-se à nossa irracionalidade
Desejo a todos os leitores um Feliz Natal e um Feliz Ano Novo.
Aos domingos - Este espaço é ocupado, alternadamente, por Carlos Tê e Álvaro Magalhães