Luís Freitas Lobo
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O final do ano suscita sempre um incontornável pensamento de balanço. 2022 confirmou o novo futebol do milénio como símbolo da globalização. A tipologia dos jogadores confunde-se. Entre os dois maiores protótipos de avançados totais de ataque ao golo, a união de explosão vai desde a França latina até à Noruega, do norte da Europa. De Mbappé, produto de aventureiros desterrados que buscaram na Velha Gália uma nova vida e, cruzando ascendentes dos Camarões e Argélia, originaram este tipo de jogador multidimensional-cultural, até Haaland, exemplar nórdico em estado puro que, a partir da morfologia possante, cresceu a ver futebol inglês, país onde nasceu quando o seu pai lá jogava.
Não quero cair na ratoeira do saudosismo de lágrima fácil mas se há desejo futebolístico que gostaria ver em 2023 é o futebol ir mais ao encontro das raízes da malandragem com a bola do que da explosão muscular (embora aqueles dois exemplares “blade runner” sejam futebolistas alucinantemente admiráveis).
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O futebol português atingiu o seu auge com um craque-Adónis como Cristiano Ronaldo mas esta foi mais uma construção própria que, como produto fabricado, saiu fora do nosso perfil tradicional mais “rodabaixa” e disparou para uma galáxia muito distante do normal do futebol luso. Penso nisso seguindo um jogo dos jogadores que muito gosto de ver em campo, quase como um miúdo insolente andando a caminho da escola para depois faltar às aulas para ir jogar futebol na rua, num baldio de terra qualquer. Eu sei que este é um cenário de outros tempos mas quantas vezes na vida o segredo para inquietações do presente não está em cenários do passado?
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O malandro, perdão, o jogador, que só jogou curtos minutos pela seleção, é Daniel Podence, 1,65 metros numa camisola que parece ficarlhe sempre grande. No futebol inglês, há quatro épocas no Wolverhampton, ele joga como na rua.
Tem a esperteza de movimentar-se atrás da bola e pegar nela com insolência, quase travando para medir em tom de desafio de cima a baixo os adversários mais possantes.
Depois, sabe quando passar, tabelar e ir embora para pedir a bola logo a seguir num espaço vazio, por onde furou e como um rato descobre buracos nos rodapés das paredes duma casa. Podence é esse “rato” de esperteza tecnicista e rapidez que vejo em forma de jogador de futebol. Tem golo, olhar desafiador, coragem e drible. Um “cartoon” real que resgata as raízes do futebol que fintam a globalização.
A construção do futebol português Séc. XXI no progressivo pós-Ronaldo cada vez mais caminha na direção das suas raízes. Bernardo Silva é um exemplo, mas para juntar a este estilo existem outros, das explosões de Rafael Leão como “avançado de faixa” ao aparecer de pontas-de-lança, como Gonçalo Ramos, posição que durante décadas cedeu na nossa formação perante um chamado “futebol de médios”. Gostava de ver Podence aparecer mais vezes mas, reconheço, não é fácil furar neste espaço.
Dirão que são muitos com outra consistência de talento há mais tempo. É verdade. Mas aquele olhar “pimentinha” no jogo só vejo com tanta clareza em Podence. E que ironia de contraestilo ver isso, com o n.º 10, em Inglaterra num equipa de nível médio que desafia as grandes.
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Podemos identificarnos com o estilo de jogo que quisermos mas a chave estará sempre no cruzamento entre a identidade (que emerge da raiz do nosso jogo/ jogadores) e a estratégia (que emerge da nossa esperteza a estudar cada adversário).
O novo selecionador tem de ter esta fórmula como base e não ceder a conjunturas que falham um olhar estrutural. Porque, nesta ânsia de tantos jogos seguidos, é cada vez mais comum confundir que há treinadores que fazem bem a uma equipa, outros que fazem bem ao futebol/jogo, e, por fim, os que fazem bem a um país. Admito o treinador do clube para pensar no primeiro caso. Não prescindo do selecionador nacional para pensar nos dois fatores seguintes, sobretudo o último, naturalmente.
Pegar na bola insolente, travar e medir o defesa de cima a baixo