O Jogo

Posse de bola, outra vítima do Mundial

- Carlos Tê O autor optou por escrever na ortografia antiga

OMundial de Outono/ Inverno juntou mais duas vítimas ao seu rol. A primeira é o Parlamento Europeu – alguns membros foram recrutados para branqueare­m o Qatar num processo que meteu sacos de dinheiro e ONG de fachada, à boa maneira mafiosa, e a extensão da onda de choque ainda é desconheci­da.

A outra vítima é a posse de bola. Há um vídeo de Guardiola dando uma palestra aos jogadores do City em que ter ou não ter bola assume contornos de doutrina, ao ponto de lhes perdoar todos os erros cometidos com ela, pois não a ter é o que mais o irrita. A derrota da Espanha perante Marrocos relançou o debate entre analistas e eruditos. No fim do jogo, o treinador marroquino, Walid Regragui, explicou candidamen­te à Imprensa que ter bola longe da área equivale a ser dono dum carrossel vistoso mas estéril por não produzir o essencial – o golo. A Espanha teve toda a bola que quis mas não rompeu a muralha mourisca. E Portugal fez o mesmo mal se viu a perder, mas só fez riscos na pintura. A Argentina precisou de pouca bola para ser campeã do mundo, limitou-se a tê-la em doses módicas e letais, como no fabuloso segundo golo marcado à França – um compêndio minimal de eficácia, técnica, rapidez de execução.

À fogueira dos teóricos atrevo-me a juntar umas achas de La Palisse. A posse de bola funciona porque é treinada durante toda a época. O City é um chassis ergonómico com movimentaç­ões de centopeia e astúcia de aranha que enreda as presas até lhes cravar o ferrão, mas não é imune a antídotos, daí ter falhado a Champions até hoje. Daí também os seus jogadores brilharem menos nas respectiva­s selecções. Fora do chassis, as peças desengonça­m-se. Cancelo é uma perna da centopeia que aparece em todo o lado, mas cá é só um defesa direito. Bernardo Silva é um vadio agitador e uma formiga sem luz na selecção. Tal como Foden, Rodri, Gundogan, Walker, De Bruyne, todos modestos no Mundial, menos Álvarez, que nem sequer é titular.

Parece mais fácil – e menos vistoso – jogar em progressão rápida do que deixar o adversário de olhos em bico com o tikitaka. A circulação de bola dá uma ilusão de domínio a jogadores que se juntam dez dias antes para jogar um Mundial. O êxito espanhol do passado assentou no bloco do Barcelona pensado por Guardiola e executado por Xavi, Iniesta, Busquets, que Del Bosque e Aragonés usaram com proficiênc­ia, tal como Scolari usou o bloco do FCP em 2004, falhando por um triz.

A Espanha de Luís Enrique foi uma manta burocrátic­a de retalhos, mas Argentina lembrou verdades simples e antigas, como a crueza do contra-ataque, a avalanche organizada, a dispensa de adornos excedentár­ios, a beleza despojada do primeiro toque. A técnica é só brincadeir­a de recreio se não tiver o foco na finalizaçã­o, por isso a imagem que fica deste Mundial é duma especiaria quente e fria servida numa baixela de prata.

Voltar às provas domésticas é voltar à praia Emília Barbosa depois dum mês num resort das Caraíbas. Habituemo-nos.

A Argentina precisou de pouca bola para ser campeã do mundo, limitou-se a tê-la em doses módicas e letais, como no fabuloso segundo golo à França

P.S. Morreu Pélé. Toquem as guitarras e os pandeiros.

 ?? ?? Di María fez o 2-0 para a Argentina na final do Mundial
Di María fez o 2-0 para a Argentina na final do Mundial
 ?? ?? Folha Seca
Folha Seca

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal