O Jogo

E o novo-rico cilindrou o velho-rico

- Folha Seca Carlos Tê O autor optou por escrever na ortografia antiga

Éraro ter a oportunida­de de ver um colosso ser cilindrado. Aconteceu na terça-feira, no City-Real Madrid, e deixou-me dividido. Por um lado, gostei de ver um velho-rico morder o pó. Por outro, chateou-me ter sido às mãos dum novorico em busca de pedigree. O City, tal como o PSG, tem sido a prova de que não basta despejar dinheiro no depósito e pôr a viatura em marcha para a passeata triunfal. Na hora H, falta o aditivo da camisola que só a memória genética do passado fornece. O Real Madrid é exemplo disso, mas a camisola tem limites. Quando o talento e a força deixam de a sustentar em campo, ela esgaça pelas costuras perante o vendaval da realidade. Figuras centrais como Kroos, Modric ou Carvajal, acusam mais um ano nas pernas e na cabeça. Na época passada, a camisola e o talento em vigor bastaram para operar uma reviravolt­a épica contra o mesmo City. Este ano, a diferença foi cruel e quase chocante. Guardiola teve tempo para digerir o fracasso e caminha, nesta época, para uma apoteose imparável. Além do encontro marcado com o vizinho de Manchester para a final da Taça de Inglaterra, o City pôs uma pressão tão canina no Arsenal que levou os londrinos a queimar uma vantagem de oito pontos e a perder a liderança. Não sei quanto de programáve­l há neste vagão que colheu um Real Madrid afastado do

título espanhol e focado na Champions. Quando se pensava que o Real tinha uma reserva de frescura, foi a equipa mais assoberbad­a que apresentou um jogo fluido e implacável, como se um mecanismo paciente tivesse programado o pico de forma individual e colectiva para este período da época. O City plana e só despende energia para sacudir o jogo, ou para recuperar a bola e fazê-la

circular, às vezes no limite do fastio e da modorra. Dizem que Guardiola faz isto porque tem planteis de luxo, apesar de ter falhado sempre a Champions longe de Barcelona. Não raro, um plantel de luxo é uma fonte de problemas, embora ele filtre o seu próprio luxo ao escolher os diamantes que quer lapidar. A liderança faz o resto: os jogadores percebem que não podem jogar sempre porque têm de dar o máximo, e o máximo não é possível jogando tantos jogos com alta intensidad­e.

Algo que Cancelo talvez não tenha aceitado, ao contrário de Bernardo Silva, que aparece em grande porque fez setenta por cento dos jogos, ou até menos. E percebe-se também que o ambiente é tenso, criativame­nte tenso. Guardiola grita do banco e leva respostas tortas. Foi

impression­ante a fúria com que De Bruyne lhe gritou de volta: “shut up! Shut up!”. Como se explicasse: “quanto mais gritas menos me concentro, cala-te!”

Daí o catalão dizer que aprendeu muito com os grandes jogadores que encontrou ao longo da carreira. Alguns têm um conhecimen­to tão intuitivo do jogo que são, a seu modo, treinadore­s adjuntos. Admitir isso é um atestado de inteligênc­ia.

Mas falta vencer o Inter de Milão – um velho-rico manhoso que irá buscar força à camisola. Será um jogo de favas contadas ou a incerteza do futebol tem algo a dizer?

Cancelo talvez não tenha aceitado que os jogadores não podem jogar sempre porque têm de dar o máximo, ao contrário de Bernardo Silva

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Bernardo Silva bisou na goleada do City ao Real Madrid, na Champions

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