O melhor que tem o futebol
No domingo passado, o coração do Sr. Manuel do Laço, o mais convicto e afável adepto de futebol que conheci, parou de bater. Era o sócio nº. 14 do Boavista, tinha 89 anos e mostravanos, com delicadeza, a altura que pode atingir o amor clubista. Só vestia as cores do Boavista: preto e branco, com muito xadrez, do chapéu aos sapatos, passando pela roupa interior. Consta que tinha 38 laços, 26 pares de sapatos (o esquerdo preto e o direito branco), 16 chapéus de coco e 9 pares de cuecas aos quadrados.
O Sr. Manuel do Laço atravessava a vida «fardado» de adepto louco de amor para cumprir uma promessa feita na época de 2000/2001: se o Boavista ganhasse o campeonato, ele nunca mais despiria a farda clubista. E cumpriu a promessa, até domingo passado, pelo que não custa imaginá-lo, assim vestido, a atravessar a eternidade.
Essa promessa foi um acto de fé, pois o adepto é um ser preso a um quotidiano de crenças, que espera pela revelação inesperada, a qual é muito mais do que a surpresa: o milagre. O Boavista campeão não foi um espécie de milagre? E quem pode dizer que esse milagre não começou no Sr. Manuel do Laço, que levava sempre para os jogos do Boavista um terço preto e branco?
Adeptos como ele (a Melinha, do Braga, o trompetista Lourenço, do Porto, Maria José Valério, do Sporting, com o seu cabelo verde ou Alexandrino Azevedo, cuja casa foi o primeiro museu do FC Porto) são retratos de traços exacerbados, mas não muito, de todos os outros amantes do futebol. E são assim, excessivos, pitorescos e, sobretudo, bastante visíveis, para darem a ver, com mais clareza, a figura mais nobre da população futebolística: o adepto.
Os frios profissionais da bola, mesmo os mais qualificados, como Mourinho ou Luís Castro, por exemplo, estão sempre a dizer que o importante é a realidade social, a família, o futebol é apenas uma doce irrealidade, ou, no caso deles, um modo de ganhar a vida. É assim com treinadores, jogadores, até dirigentes, que também já são profissionais. O laço deles com o futebol é o dinheiro. Porém, para adeptos como o Sr. Manuel do Laço, que encontram na intensidade sensorial do futebol a verdadeira vida, é exactamente ao contrário. O laço do Sr. Manuel de Sousa com o futebol era o amor (ao seu clube). Adeptos como ele amam desmedidamente e consomem-se nessa combustão amorosa, apesar do futebol lhes oferecer uma realidade sem grandes relâmpagos, por vezes, até com elevadas doses de sofrimento e desgosto. Disse-me, um dia, um amigo adepto, a meio de um jogo e no auge da angústia: «O pior é que as nossas mulheres pensam que nós vimos ao futebol para nos divertirmos». O futebol é, por estes dias, negócio monstruoso e pornográfico em que todos ganham, e muito, menos o generoso adepto, que se consome em dispêndio, entrega, puro amor. É, de longe, o melhor que tem o futebol. Por isso, quando morre alguém como o Sr. Manuel do Laço, que era o pináculo do amor clubista, todos os outros adeptos se sentem enlutados (e assim foi, neste caso: as condolências vieram de todo o lado). Mas é o próprio futebol quem mais chora a sua perda.
O Boavista campeão não foi uma espécie de milagre? E quem pode dizer que esse milagre não começou no Sr. Manuel do Laço?