Gatilhos leves no Jamor
Faz parte da natureza humana haver gente que gosta de armar estrilho para se sentir viva e gente que gosta de meter essa gente na linha. Uns descendem da velha linhagem dos rufias, os outros apuram a vocação autoritária praticando-a. Às vezes, a unir os dois campos, a adrenalina viciante que existe na acção.
Isto vem a propósito das perturbadoras imagens de adeptos alvejados pela polícia na final do Jamor, sem motivos – que se podiam justificar se fossem aparentes. Há a imagem duma mulher que, ao passar, sente o impacto duma bala de borracha e cai de joelhos, perplexa, até ser erguida por alguém que acorre. Outra imagem mostra alguém digitando o telefone enquanto um sniper faz mira e dispara, para depois ser afastado por um oficial para esfriar o entusiasmo lampeiro e quase sádico.
São imagens que valem mil palavras, mas há palavras que têm de explicar aquelas imagens, sobretudo porque não foram suficientemente graves para criar sobressalto na opinião pública. O radar da indignação fica mais morno quando está em causa um evento tradicionalmente arruaceiro como o futebol, daí a polícia, por certo, ter tido as suas razões. Acontece que as razões são invisíveis, embora a notícia que circulava antes da bola rolar aludisse a desacatos entre adeptos do FCP. Lá estão eles
de novo, pensei, mas depois, pelas imagens, percebeu-se que alguma coisa não batia certo. Numa delas, um adepto tenta acalmar a polícia de choque que, sob o sinistro anonimato dos capacetes, parece ávida por dar ao dedo no gatilho. Por isso o FCP fez bem em pedir explicações – à PSP, à Federação, à Liga – para se descortinar o motivo da excitação daqueles agentes, mais próxima dum concurso
de tiro numa barraca de feira do que da serenidade vigilante dum evento desportivo. Porque a questão é esta: terá havido uma ameaça à ordem pública que fundamentasse o uso de balas de borracha contra os adeptos? Importa esclarecer isto porque, doutro modo, é inútil insistir em salmos de bom comportamento e futebol para as famílias, para depois serem os próprios zeladores da ordem a semear o pânico com o uso da força desproporcional. Também não alinho na ideia que correu, mal as imagens circularam, de que havia o objectivo de dar uma lição à horda azul e branca que desceu à capital, ao mínimo pisar do risco. Primeiro, porque horda é uma coisa indistinta, ainda mais agora, dada a inaudita coincidência do primeiroministro e do líder da oposição serem portistas.
Depois, porque a imensa maioria azul e branca também se regozijou pela minimização de toxicidade no seu seio, e da qual ninguém está livre.
Daí ser útil apurar o acontecido. Porque das duas uma: ou tudo não terá passado dum episódico e infeliz desmando da polícia, ou então será reflexo duma nova ordem que remete para o pingalim de má memória para muitos, e saudosa para alguns.
Se isto se deu numa final da Taça de Portugal, amanhã pode dar-se numa manifestação pacífica ou numa greve. Do modo como hoje sopra o vento, convém estar atento aos sinais.
A questão é esta: terá havido uma ameaça à ordem pública que fundamentasse o uso de balas de borracha contra os adeptos? Importa esclarecer isto*