Record (Portugal)

Na luta pelo melhor de sempre

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Joaquim Meirim (1935-2001) entendia os jogadores como homens completos. Quando alguém lhe falava de um futebolist­a cujo problema era não ter cabeça, o velho mestre não resistia e punha a conversa no lugar: “Eu, aos meus jogadores, treino-os da cabeça aos pés e não só do pescoço para baixo.” Por essas e por outras, Meirim era tão corrosivo perante certos debates. “Nunca se esqueçam de que a cabeça também se treina”, era a conclusão fácil de um pedagogo com preocupaçõ­es sociais, reveladas na avidez de conhecer bem os jogadores mais problemáti­cos: queria saber quem eram, de onde vinham, de que família e meio, de modo a conhecer a origem das fragilidad­es para tentar ultrapassá-las.

O preconceit­o, a leveza e o desconheci­mento levam à constru

ção de ideias primárias sobre alguns futebolist­as. Por vezes os treinadore­s assumem só uma parte do papel que lhes cabe e, no limite, contribuem para a destruição de adolescent­es que vão ganhando fama de menos preparados psicologic­amente. João Cancelo foi um desses casos: todos lhe reconhecia­m extraordin­árias qualidades, mas muitos, quase todos, o diminuíram face a debilidade­s no comportame­nto e até no caráter. Faltou-lhe, porventura, um Joaquim Meirim para investir nele com toda a convicção. JC demorou a expressar-se na plenitude e a ser reconhecid­o sem limitações. Desde os últimos tempos de Benfica tem calibrado o espírito de um cavalo selvagem com as obrigações táticas impostas pelas regras coletivas; moderou ímpetos juvenis e irresponsá­veis em nome dos valores adultos de equilíbrio e serenidade; adaptou a agitada sensação de invencibil­idade em cada momento ao raciocínio de quem pensa o jogo como um todo. Foi um gigantesco puzzle em construção gradual, com momentos emocionant­es e depressivo­s; que o puseram em órbita e o deitaram abaixo, com elogios na escalada da montanha e os seus antónimos na descida.

Longe dos nossos olhos e do foco

mediático, JC cresceu, impôs-se e entrou numa estrada de glória na qual já não há volta atrás. Era um enorme jogador no Valencia, melhorou ainda no Inter Milão e traçou definitiva­mente o destino ao serviço da Juventus. Tornou-se um fenómeno planetário numa das melhores equipas da Europa, isto é, entrou num clube restrito de que só fazem parte Cristiano Ronaldo e Bernardo Silva – Renato Sanches e Nélson Semedo estão na elite mas num patamar abaixo de reconhecim­ento. Aos 24 anos, tem tudo quanto precisa (talento, físico, técnica, ambição…) para ser uma referência mundial como um dos melhores intérprete­s da função que desempenha. A autoridade conquistad­a num colosso como a Juve, as dificuldad­es que tem desbloquea­do e a influência exercida a partir de zonas periférica­s dão-lhe a aura de um dos melhores defesas-direitos do futebol moderno.

Um jogador que defende cada

vez melhor e constrói ao nível dos grandes artistas; que está a tornar-se implacável nas sucessivas viagens da frente para trás e continua fulgurante quando embala de trás para a frente; um defesa que não perdeu argumentos desequilib­radores na aproximaçã­o à baliza adversária e se apetrechou com armas cada vez mais fortes para garantir segurança na zona à sua guarda. A carreira ainda só vai no início. Quando atingir o auge (e não deve faltar muito), será consensual atribuir-lhe um lugar na história. Por enquanto, o que já fez e continua a fazer estimula a convicção de que nunca Portugal teve um lateral-direito com tantas qualidades técnicas e físicas – nem outro que, na sua idade, suscitasse um futuro tão radioso. Por todas as razões e mais alguma, JC tem pela frente o desafio de aproveitar as circunstân­cias favoráveis que entram pelos olhos dentro de qualquer adepto: tornar-se o melhor defesa-direito de sempre do futebol português. Não é questão menor.

JC CRESCEU, IMPÔS-SE E ENTROU NUMA ESTRADA DE GLÓRIA NA QUAL JÁ NÃO HÁ VOLTA ATRÁS QUANDO ATINGIR O AUGE (E NÃO DEVE FALTAR MUITO) ESPERA-O UM LUGAR NA HISTÓRIA. PARA JÁ, JOÃO CANCELO TEM PELA FRENTE O DESAFIO DE APROVEITAR AS CIRCUNSTÂN­CIAS E TORNAR-SE O MELHOR DEFESADIRE­ITO DE SEMPRE DO FUTEBOL PORTUGUÊS

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Foi no Valencia que deu o grande passo em frente. Mostrou então todas as qualidades, embora revelando alguns dos defeitos
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Fruto da formação do Benfica, aqui o vemos a festejar o título de juvenis em 2010/11. Avocação ganhadora não é de agora
 ??  ?? Na Seleção tem agora um papel a desempenha­r. Arelação com o golo é uma delas, ao lado de especialis­tas como Eder e... Cristiano
Na Seleção tem agora um papel a desempenha­r. Arelação com o golo é uma delas, ao lado de especialis­tas como Eder e... Cristiano

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