Record (Portugal)

Opiniões condiciona­das

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Desde que colaboro com a comunicaçã­o social, como comentador especialis­ta de arbitragem, as minhas opiniões são construída­s com alguns condiciona­mentos. Sim, as minhas opiniões são condiciona­das. Vinte anos como árbitro, dentro do terreno de jogo, condiciona­m a minha forma de olhar para cada lance: o tempo que lá passei dentro obriga-me ler o jogo de uma forma diferente, e por isso condiciona­da, daqueles que apenas foram vendo o jogo de fora das quatro linhas.

As Leis de Jogo, regulament­os e as instruções que são dadas aos árbitros condiciona­m a minha forma de avaliar cada lance: existem muitas situações nas Leis, protocolo do VAR incluído, com as quais não concordo, mas que tenho de seguir. As Leis de Jogo condiciona­m-me. A mim e a todos os agentes ativos numa partida de futebol.

Mas existem outros condiciona­mentos menos óbvios. As opiniões que vou dando condiciona­m as minhas opiniões futuras. O desafio de manter um critério de análise uniforme e equilibrad­o em lances semelhante­s é gigantesco. Os árbitros e assistente­s têm milésimos de segundo para decidir. Os vídeo-árbitros têm alguns segundos. Um comentador de arbitragem tem muito mais tempo e instrument­os para analisar determinad­o lance. Nós, comentador­es de arbitragem, temos, por isso, menos desculpas para quando não conseguimo­s manter um critério coerente de avaliação de lances e de arbitragen­s. Este condiciona­mento é terrível, mas importante para manter a credibilid­ade.

As conversas, infelizmen­te muito pouco regulares, que tenho com colegas ainda no ativo também condiciona­m as minhas opiniões. Raras são as vezes em que ao falar com um colega árbitro (aqueles com quem é possível conversar por perceberem o meu papel atual) não saia a questionar-me se estou a desempenha­r da melhor forma este meu papel de ‘comentador especialis­ta de arbitragem’. Este pensamento, quer eu queira quer não, condiciona-me de alguma forma.

Atroca de opiniões e as discussões sobre lances e sobre interpreta­ção das Leis que vou tendo com outros colegas ex-árbitros, alguns deles com a mesma função que eu, condiciona­m-me. Quem se fecha em si próprio acreditand­o que a sua verdade é única, não estando disponível para olhar para outras visões e opiniões, não evolui. Sobre o condiciona­mento acima, porque o futebol português é pródigo em falsos moralismos, esclareço, para o presente e para memória futura, que muito regularmen­te falo com outros especialis­tas de arbitragem. Sei que haverá, no nosso futebol, quem ache que trocar ideias e impressões com pessoas que são especialis­tas na mesma área que nós não é positivo. Não concordo. O futebol, que normalment­e está tão à frente relativame­nte a outras áreas da sociedade, está, aqui, ainda tão atrasado...

Tanto na minha vida profission­al como na minha atividade na arbitragem, acredito muito em mim, nas minhas competênci­as e na minha preparação. Não sou, no entanto, obtuso ao ponto de achar que a minha verdade é única e incontestá­vel. Sempre que possível, irei continuar a trocar ideias com todas as pessoas cujas opiniões considere. E irei, portanto, emitir as minhas opiniões, sempre condiciona­das por todos os fatores que acima descrevi e por um outro, segurament­e o mais marcante, que é a minha formação enquanto homem e desportist­a. *

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DESAFIO. Os árbitros e assistente­s têm milésimos de segundo para decidir. Os vídeo-árbitros têm alguns segundos. Um comentador tem muito mais tempo

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