Lage, extra-tribal - é para durar?
O TREINADOR CAMPEÃO, BRUNO LAGE, FOI UMA PEDRADA NO CHARCO, ESTE ANO. RESISTIRÁ NO TEMPO AO AMBIENTE POLUÍDO DO NOSSO FUTEBOL?
O técnico campeão nacional, Bruno Lage, faz parte de uma plêiade de treinadores que tem origem num processo de formação no qual acredito.
Háos treinadores que foramjo
gadores de renome. Há os treinadores que foram jogadores de média qualidade. E há os treinadores que, enquanto jogadores, foram praticamente irrelevantes.
Ficaevidente, pelos exemplos co
nhecidos, desde logo a partir de José Mourinho e Carlos Queiroz, que não basta ter sido um grande jogador para se ser um grande treinador. Temos dois treinadores que foram jogadores acima da média, como Guardiola e Diego Simeone, que estão a fazer carreiras muito interessantes enquanto técnicos de futebol. Guardiola representa, a partir de um patamar relevante como médio, a evolução mais significativa na ligação do percurso jogador/treinador, e Zidane, apesar dos êxitos conseguidos no Real Madrid, talvez seja o nome mais bem colocado para, na transição de jogador para treinador, a um nível mais elevado, conseguir alcançar o ‘pleno’. Figo não quis ser treinador e alguns dos nosso treinadores mais cotados no espaço europeu, como por exemplo Leonardo Jardim e Marco Silva, também não foram atletas de eleição. Bruno Lage “não jogavanadade especial” - dizemos que o viram dar uns pontapés na bola - e foi para Educação Física. Algo parecido com o que aconteceu com José Mourinho e Carlos Queiroz, hoje por hoje, com carreiras sustentadas e vivências, apesar de tudo, diferentes.
Ser treinador de futebol(comresultados ouexpressão de méri
tos) nem é uma coisa exclusivamente de livros nem é uma coisa exclusivamente de pitons. Quem consegue elevar o desempenho com base na prática e o conhecimento (científico e não científico) fica mais próximo do reconhecimento, não apenas dentro da ‘corporação’, mas também junto da opinião pública.
O sucesso está muito dependen
te de vários factores, desde logo porque o treinador não joga, isto é, na hora e meia não anda aos pontapés na bola. O treinador pode fazer jogar. O treinador, no momento da decisão, não atira para dentro da baliza ou remata para as nuvens. O treinador está sempre dependente daquilo que o jogador possa fazer e a tarefa do treinador está não apenas em tentar aperfeiçoar as valias técnico-tácticas (cultura de posicionamento, dinâmicas/movimentações; preenchimento dos espaços) mas também em fazer o jogador acreditar que a melhor forma de se evidenciar individualmente é fazê-lo em prol do colectivo.
O sucesso de umtreinador passa sempre pelacapacidade de unir um grupo tão heterogéneo e tão distinto nas suas raízes como o é um plantel de um clube de futebol, que absorve na sua periferia outros contributos muito importantes no processo de construção do êxito. E esse foi, talvez, o principal mérito de Bruno Lage.
Comefeito, estacoisaque ele agoracontou, segundo a qual a primeira decisão foi “mudar o sistema de jogo com o miúdo [João Félix] lá dentro”, parece uma coisa prosaica, mas essa decisão, tomada sem reservas, foi especial para a reviravolta que o futebol do Benfica conheceu.
Um treinador tem de acreditar nas suas ideias, mas é muito importante o processo de fazer o grupo acreditar nessas ideias. A comunicação simples e a mensagem de integração e de incorporação (não exclusão), traduzida pelos exemplos de Taarabt e Jonas, foram essenciais para unir o grupo em torno do objectivo principal.
Bruno Lage eraumdos treinadores daáreadaFormação do Benfica, mas no período conturbado da saída de Rui Vitória (ainda contrariada, num primeiro impulso, pelo presidente) não se tratou de uma aposta inequívoca e inegociável para o resto do campeonato. As circunstâncias e a forma rápida como Lage se adaptou ao novo contexto ditaram que a sua afirmação fosse inelutável.
FoiLage quemconvenceuaestruturado Benfica, com a sua adaptação, métodos e resultados. E isso ainda mais aumenta os méritos do treinador.
É preciso dizer, no entanto, que ao longo dos últimos anos o Benfica foi o clube que mais cresceu em termos de organização e infra-estruturas, estando ainda por apurar se – a par desse crescimento – o Benfica deitou mão a práticas menos lícitas, que possa ter potenciado, ou não, o regresso à hegemonia no futebol português. Com essa organização e infra-estruturas, tudo fica mais fácil. E, por isso, neste caso, não se deve olhar apenas para árvore nem apenas para a floresta.
O discurso de Lage (simples, apaziguador, inclusivo, extra-tribal) é também algo que queremos contar para o futuro. O futebol português precisa dele para se equilibrar. Com uma base de respeito muito mais alargada por todos e entre todos.
Há coisas que, no futebol, nunca vão mudar. Os adeptos só têm olhos (e ouvidos) para as vitórias. Mesmo a ganhar, e apesar do pedido do treinador-campeão, o Marquês ficou por limpar e, na hora da derrota, se ela acontecer, o Lage-bestial será convertido em Lage-besta. Tão certo como o destino. Por isso, a pergunta: quanto tempo durará este Lage, extra-tribal?