Querem mesmo um campeão de secretaria?
Talvez seja necessário recordar o óbvio: o campeonato vai recomeçar para que os clubes possam arrecadar as receitas dos direitos televisivos, evitando assim insolvências em catadupa. O futebol português viveria bem sem campeão, com decisões administrativas sobre Europa, subidas e descidas. Sem dinheiro das operadoras, não só muitos clubes não resistiriam, como enfrentaríamos um longo período em que a sustentabilidade da Liga ficaria em causa.
É por isso que tudo está a ser feito para retomar a competição, com um protocolo apertado e com exigências que não encontram paralelo noutras atividades. O dever de recolhimento domiciliário para atletas, avaliações clínicas diárias, autorização para monitorização e rastreio de contactos e até o termo de responsabilidade que é assumido, correspondem a um quadro de excecionalidade que, de facto, não é passível de ser replicado noutros setores de atividade. Convém, aliás, ter presente que em poucas outras profissões a medicina no trabalho já era tão invasiva como no futebol.
Na altura em que escrevo, nove atletas testaram positivo e, suponho, todos eles estariam assintomáticos. Se considerarmos que no conjunto dos 18 clubes foram testados uns 550 jogadores, continua a ser uma percentagem muito baixa de positivos. Aliás, se a prevalência de Covid-19 que encontramos no futebol corresponder ao que se passa no país, estamos mesmo muito longe da imunidade de grupo e a ameaça de uma segunda vaga é alta – o que tornará, por exemplo, bastante improvável que a temporada de 2020/21 decorra com jogos à porta aberta.
Mas se com este protocolo o futebol tem condições para avançar com riscos (por imperiosa necessidade financeira!), talvez valha a pena considerar um plano b, para o caso de a situação sanitária se deteriorar e a temporada desportiva não se concluir ou nem sequer se reiniciar.
Se tal suceder, a atribuição do título é um aspeto irrelevante. Mas se o clube que for em primeiro quiser celebrar esta magnífica conquista, que faça bom proveito (como benfiquista, e se por acaso for o Benfica que estiver nessa situação, continuarei em busca do 38 na próxima temporada). A questão decisiva continuará a ser financeira. Se não me preocupa um título administrativo, terá, contudo, de ser promovido um mínimo de sustentabilidade financeira para a Liga. Uma solução razoável passará por dividir a receita do acesso à Champions e aos restantes lugares europeus pelo conjunto dos clubes, com um sistema de rateio que premeie o mérito desportivo.
Sem jogos, sem bilhética e sem transmissões televisivas, o empobrecimento será inevitável, pelo que não redistribuir os recursos que sobrarão condenará o futebol português ao definhamento. Podemos ter um campeão de secretaria, mas dificilmente teremos competições disputadas nos próximos anos.