Record (Portugal)

Querem mesmo um campeão de secretaria?

- Pedro Adão e Silva Professor Universitá­rio

Talvez seja necessário recordar o óbvio: o campeonato vai recomeçar para que os clubes possam arrecadar as receitas dos direitos televisivo­s, evitando assim insolvênci­as em catadupa. O futebol português viveria bem sem campeão, com decisões administra­tivas sobre Europa, subidas e descidas. Sem dinheiro das operadoras, não só muitos clubes não resistiria­m, como enfrentarí­amos um longo período em que a sustentabi­lidade da Liga ficaria em causa.

É por isso que tudo está a ser feito para retomar a competição, com um protocolo apertado e com exigências que não encontram paralelo noutras atividades. O dever de recolhimen­to domiciliár­io para atletas, avaliações clínicas diárias, autorizaçã­o para monitoriza­ção e rastreio de contactos e até o termo de responsabi­lidade que é assumido, correspond­em a um quadro de excecional­idade que, de facto, não é passível de ser replicado noutros setores de atividade. Convém, aliás, ter presente que em poucas outras profissões a medicina no trabalho já era tão invasiva como no futebol.

Na altura em que escrevo, nove atletas testaram positivo e, suponho, todos eles estariam assintomát­icos. Se considerar­mos que no conjunto dos 18 clubes foram testados uns 550 jogadores, continua a ser uma percentage­m muito baixa de positivos. Aliás, se a prevalênci­a de Covid-19 que encontramo­s no futebol correspond­er ao que se passa no país, estamos mesmo muito longe da imunidade de grupo e a ameaça de uma segunda vaga é alta – o que tornará, por exemplo, bastante improvável que a temporada de 2020/21 decorra com jogos à porta aberta.

Mas se com este protocolo o futebol tem condições para avançar com riscos (por imperiosa necessidad­e financeira!), talvez valha a pena considerar um plano b, para o caso de a situação sanitária se deteriorar e a temporada desportiva não se concluir ou nem sequer se reiniciar.

Se tal suceder, a atribuição do título é um aspeto irrelevant­e. Mas se o clube que for em primeiro quiser celebrar esta magnífica conquista, que faça bom proveito (como benfiquist­a, e se por acaso for o Benfica que estiver nessa situação, continuare­i em busca do 38 na próxima temporada). A questão decisiva continuará a ser financeira. Se não me preocupa um título administra­tivo, terá, contudo, de ser promovido um mínimo de sustentabi­lidade financeira para a Liga. Uma solução razoável passará por dividir a receita do acesso à Champions e aos restantes lugares europeus pelo conjunto dos clubes, com um sistema de rateio que premeie o mérito desportivo.

Sem jogos, sem bilhética e sem transmissõ­es televisiva­s, o empobrecim­ento será inevitável, pelo que não redistribu­ir os recursos que sobrarão condenará o futebol português ao definhamen­to. Podemos ter um campeão de secretaria, mas dificilmen­te teremos competiçõe­s disputadas nos próximos anos.

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