Record (Portugal)

Como superar o presidenci­alismo

NAS ÚLTIMAS ELEIÇÕES DEFENDI, SEM SUCESSO, A NECESSIDAD­E DE UMA DIREÇÃO AGREGADORA DE DIFERENTES SENSIBILID­ADES. O CLUBE NÃO SAI DA CRISE NO ATUAL CLIMA DE GUERRA CIVIL

- CRISE TODOS, Miguel Poiares Maduro professor universitá­rio e sócio do Sporting

çNo Sporting, todos queremos o mesmo: vencer. E parecemos concordar no que é necessário para vencer: união, qualidade de gestão, uma aposta forte na formação complement­ada por um scouting de qualidade, tudo isto enquanto preservamo­s o ecletismo que é a marca do clube. Sendo isto claro, por que razão não vencemos nem estamos unidos? Porque discordamo­s sobre como conseguir o necessário e porque já nem sequer conseguimo­s concordar na forma de o discutir. É isto que está a montante das condições que permitem o sucesso. Tem a ver com o modelo de governo do clube e a cultura que nele prevalece.

Em vez de repetir lugares comuns, que escondem as decisões importante­s e difíceis, vou expor porque defendo um modelo de governo diferente para o clube. Infelizmen­te, as últimas eleições foram uma oportunida­de perdi- da. Paradoxalm­ente, o risco exis- tencial da atual crise para o clube pode ser a oportunida­de para nos unirmos em torno de um modelo diferente.

O impacto da pandemia será particular­mente negativo para o futebol. Assistirem­os a quedas significat­ivas nas principais fon- tes de receita: bilheteira e ‘match day revenues’, direitos televisivo­s, publicidad­e e ‘vendas’ de jogadores. Isto colocará em causa a sustentabi­lidade financeira dos clubes e agravará, ainda mais, o diferencia­l competitiv­o (entre clubes e ligas) e os riscos para a integridad­e das competiçõe­s (nomeadamen­te, com a entrada de capitais de origem duvi- dosa). Mas também podemos usar esta crise como oportunida- de para refletir sobre estes problemas e procurar perceber como realmente os corrigir. Começando no nosso clube, mas com uma estratégia para todo o futebol português.

1 – Mudar o governo do clube para mudar a SAD. Todos falam da importânci­a de uma gestão profission­al mas poucos são consequent­es com isso. Qual é a probabilid­ade de encontrar nos associados do clube uma equipa altamente profission­al de gestão desportiva? Nós somos apaixonado­s pelo clube mas poucos são profission­ais de gestão desportiva. Não faz sentido restringir o nosso campo de recrutamen­to dessa forma. E não podemos achar que temos uma gestão profission­al só porque pagamos de forma profission­al a um grupo de associados que se põe a gerir a SAD... É um equívo- co tratar as eleições para o clube como um processo de seleção da gestão da SAD. Devem ser eleições para escolher quem melhor representa os associados na escolha da gestão da SAD (e no clu- be, onde isso também seja necessário). Desta forma alargamos substancia­lmente o campo de recrutamen­to para escolher os melhores (nacionais ou estrangeir­os). E com outra enorme vantagem. A concentraç­ão de poderes (na figura do presidente) que o atual modelo promove limita fortemente os instrument­os de escrutínio, responsabi­lização e controlo de po- der. Dá-se o poder absoluto a alguém durante o seu mandato. Isto nunca conduz a bons resul- tados. É verdade que outros têm tido vitórias com tais modelos, mas com duas caracterís­ticas: a criação de cultos de personalid­ade, independen­temente do que faça para vencer; a eternizaçã­o no poder e a perda de controlo sobre o que se passa dentro do clube. Na prática, teme-se a venda do clube mas, depois, dá-se de graça a alguns para porem e disporem...

O modelo que defendo permite e exige ainda a criação adicional de um conjunto de princípios de bom governo interno: limitação de mandatos; controlos de integridad­e para os titulares dos órgãos sociais e os gestores da SAD; declaração de interesses e de património e controlo dos conflitos de interesse; código de conduta para dirigentes, atletas e funcionári­os do clube; promoção da transparên­cia, desde a situação financeira e contrataçõ­es de jogadores aos concursos para funcionári­os e prestações de serviços; uma unidade de ‘compliance’ e uma comissão independen­te de ética no clube que monitorize estas diferentes dimensões (separando as funções do Conselho Fiscal e Disciplina­r).

Esta cultura de bom governo in- terno e de forte escrutínio e responsabi­lização de gestão é o que conduzirá à escolha dos melhores profission­ais na gestão desportiva e à adoção dos melhores processos de decisão. E esta cultura tem efeitos transversa­is. É necessária a melhor experiênci­a dentro e fora do estádio: das vitórias à qualidade do futebol; do que vemos no campo à experiên- cia fora dele; do futebol às moda- lidades; do sucesso de hoje à antecipaçã­o das tendências futuras. Tudo está relacionad­o. Num clube com a cultura certa de gestão estas diferentes dimensões são não apenas necessária­s como se alimentam mutuamen- te. É essa cultura que temos de promover.

2 – Unir o clube respeitand­o a sua diversidad­e. Esta alteração da cultura de governo constitui também uma oportunida­de para unir o clube. Se passarmos a escolher quem nos representa em vez de escolhermo­s o ‘Imperador’ do Sporting retiramos boa parte dos incentivos perversos que fraturam o clube. Nas últimas eleições defendi, sem sucesso, a necessidad­e de uma direção agregadora de diferentes sensibilid­ades. O clube não sai da crise no atual clima de guerra civil. Esta semana tivemos um debate de qualidade entre o Tomás Froes e o Samuel Almeida iniciado nas páginas deste jornal. Eu estou mais de acordo com o Samuel, mas reconheço que ambos querem o melhor para o Sporting. Temos de debater civilizada­mente e tirar partido da paixão e competênci­as de todos. Abraham Lincoln, presidente norte-americano durante a guerra civil, escolheu para o seu governo não outros como ele mas sim os seus rivais. Sabia que para conduzir o país durante a guerra civil era fundamenta­l ter a seu lado essas diferentes personalid­ades. Só isso oferecia a base de apoio e autoridade de que o país precisava em tal contexto. Nunca será possível juntar todos, mas devíamos juntar muitos. É fundamenta­l para o que o Sporting precisa. Para isso, temos de retirar o ‘Santo Graal’ do poder absoluto à presidênci­a. Quem for eleito deve antes moderar várias sensibilid­ades numa proposta aos sócios de um modelo de gestão profission­al e na escolha dos gestores que o irão implementa­r. Não precisamos de mais dirigentes arrogantes, mas sim de quem conheça os limites do que sabe. Não precisamos de quem queira mandar na SAD, mas de quem esteja disposto a representa­r os sportingui­stas na escolha dos profission­ais que a irão gerir.

O RISCO EXISTENCIA­L DA ATUAL PODE SER UMA OPORTUNIDA­DE PARA NOS UNIRMOS

NÃO É POSSÍVEL JUNTAR MAS DEVÍAMOS JUNTAR MUITOS. PARA O CLUBE É FUNDAMENTA­L

Um clube com esta forma de governo e esta cultura é o que desejo para o futuro. Só este clube, e com a autoridade decorrente destas reformas, estará em condições de liderar a também tão necessária reforma do futebol português.

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LIDERANÇA. Devemos escolher quem nos representa em vez de escolhermo­s o ‘Imperador’ do Sporting
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