Lage e o mar convulso
O MÉRITO DE BRUNO LAGE NA RECONQUISTA É TÃO INCONTESTÁVEL COMO O DEMÉRITO EM NÃO TER PERCEBIDO OS SINAIS QUE OS TRIUNFOS INTERNOS EM CATADUPA LHE IAM DANDO. AO CONTRÁRIO DO QUE SERIA EXPECTÁVEL, O BENFICA, EM TERMOS COLETIVOS, NÃO EVOLUIU. PIOR: REGREDIU. E CONTINUA VICIADO EM ESTICÕES, ACELERAÇÕES, E À ESPERA DE ENCONTRAR O ESPAÇO QUE LHE FOI SENDO HABILMENTE SUBTRAÍDO
pouco mais de um ano, as duvidosas máquinas propagandistas, que tão depressa concebem como desmoronam e insulam ídolos, não hesitaram em grudar o perigoso rótulo de “novo Mourinho” a Bruno Lage. Eram tempos de natural regozijo para as hostes encarnadas, após uma recuperação soberba na tabela classificativa que conduziu ao 37.º título nacional, e de delírio para a turba resultadista, que continua a considerar que a vitória é a única definidora de qualidade no futebol. O mérito de Lage é irrefutável. Apanhou e uniu os cacos de uma equipa desagregada por Rui Vitória, que associava uma categórica crise de resultados a uma mais do que evidente crise de rendimento, reflexo de uma degradação pungente da qualidade de jogo de época para época, ao recuperar jogadores proscritos ou oriundos da equipa secundária, robustecendo-a através da qualidade do treino. Com isso, o Benfica, mesmo que exces- sivamente preso a um pensamento estratégico que é a principal imagem do seu treinador, me- tamorfoseou-se numa equipa muito forte nos momentos de transição e mais competente nos momentos de organização, mesmo que fosse evidente a necessidade de se tornar muito mais acu- tilante em ataque posicional.
expectável que esse adensar da qualidade de jogo ocorresse em 2019/20, o primeiro exercício completo de Bruno Lage como treinador do Benfica. O que não sucedeu. Até porque na maior parte dos períodos em que as águias foram capazes de dominar o jogo com bola no meio-campo adversário, isso deveu-se à opção do rival em abdicar da bola e defender num bloco médio-baixo ou baixo. Como sempre, a sequência inaudita de triunfos, bem patentes em 18 vitórias nas primeiras 19 jornadas do campeonato, o que permitia superar recordes e usufruir de uma confortável vantagem de sete pontos sobre o FC Porto, como também no apuramento para a final da Taça de Portugal e no pungente triunfo sobre o Sporting (5-0) na Supertaça, foi escondendo a campanha desapontante na Liga dos Campeões e uma derrota caseira ante o FC Porto (0-2). E o óbvio era uma equipa com um elevadíssimo pensamento estratégico que, mesmo sem o superlativo João Félix, se mostrava capaz de atropelar qualquer adversário que lhe permitisse jogar com espaço, de forma a soltar o momento em que se especializou: o de transfor- mar a transição ofensiva em con- tra-ataque ou ataque rápido. Só que seria inevitável que os rivais começassem a retirar esses espaços, o que obrigaria os encarnados a encontrarem outro tipo de soluções com bola. Mas não as en- contraram, afundando-se em processos de construção previsíveis, alternando o recurso à circu- lação em ‘u’ com tentativas quase sempre goradas de ligar o jogo de forma direta, o que dificulta o desvendar de espaços para criar e chegar com qualidade a zonas de finalização. Algo que amamentou uma desconfiança tão inóspi- ta como injustificada em Weigl, um reforço de peso que comunica futebolisticamente numa linguagem – a gestão dos ritmos de jogo e a predominância do cérebro na tomada de decisão – muito diferente da que Lage – esticões e acelerações – estabeleceu, e que se agravou com a lesão de Grimal- do, o lateral-esquerdo que se mos- trava o elemento mais capaz para conduzir a bola com critério, esta- belecer conexões, mesmo quando parecia inventar linhas de pas- se, e para criar desequilíbrios em espaços curtos, e com o ostracismo a que foi votado o criativo Zivkovic, talhado para inventar espaços dentro de estruturas coriáceas, recuperado na segunda parte ante o Santa Clara quando somava 152 minutos de utilização nos últimos 17 meses.
Só que os problemas do Benfica não se esgotam na previsibilidade do seu processo ofensivo quando o opositor lhe retira espa- ço. A qualidade do processo defensivo foi-se degradando, tanto em organização como em transição, no decurso do exercício, e os primeiros sinais surgiram quando a equipa ganhava jogos em ca- tadupa, mas sentia arduidades para controlar e adormecer os jogos. A sequência de resultados negativos – impensáveis dois triunfos nos últimos 12 oficiais – apenas se limitou a confirmá-los e a adensá-los, até porque Bruno Lage continua a esquecer-se do essencial: não há melhor forma de defender do que ter a bola. Se é certo que os encarnados raramente são surpreendidos pelos adversários em movimentos padrão, fruto do trabalho detalhista e estrategista do técnico, como se viu em Vila do Conde ao condicionar a habitual saída do Rio Ave pelo corredor esquerdo, a reação a alterações ao padrão tem criado problemas, tal como se viu no mesmo jogo, quando Carlos Carvalhal, de forma arguta, conduziu a saída da sua equipa para o flanco oposto e até encontrou espaço para atacar a profundidade nas costas de Ferro e de Nuno Tavares. Mas, acima de tudo, percebe-se que o Benfica se parte com tremenda facilidade – quase num 5x0x5 – no momento de transição defensiva, o que se agrava quando Gabriel é um dos médios-centro numa estrutura em 4x4x2; que denota, em organização, cada vez mais dificuldades para controlar os espaços entrelinhas, o que se agudiza quando o adversário não exibe receios em fazer circular a bola de forma apoiada; e que por mais ajustes que vá fazendo na defesa de bolas paradas – com clara predominância zonal – continua a sofrer golos fotocopiados no mesmo espaço, tornando evidente a necessidade de um guarda-redes que não demonstre receios em abandonar a linha de baliza e que se mostre capaz de atacar bolas aéreas no limite da sua área de jurisdição.
OS PROBLEMAS DO BENFICA NÃO SE ESGOTAM NA PREVISIBILIDADE DO SEU PROCESSO OFENSIVO