Record (Portugal)

As cartilhas e a sede de controlo

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O FUTEBOL PORTUGUÊS PRECISA DE INICIAR UM NOVO CICLO, AO NÍVEL DA COMUNICAÇíO, MAS ISSO SERÁ PRATICAMEN­TE IMPOSSÍVEL COM PINTO DA COSTA E LUÍS FILIPE VIEIRA NO PODER

Em NOTA a fechar o artigo da semana passada, escrevi: “Espero sinceramen­te que Jorge Jesus e, até, Sérgio Conceição (confirmand­o-se a sua continuida­de no FC Porto) se unam no combate aos tóxicos departamen­tos de comunicaçã­o, empenhados em transforma­r o futebol numa lixeira atómica. Com ela, o futebol em Portugal nunca se desenvolve­rá nem será olhado com seriedade.”

Este é um tema crucial para o processo de desintoxic­ação do futebol português e é preciso que se adquira uma consciênci­a colectiva no País, num quadro de normalizaç­ão das relações entre o negócio futebol e a sociedade, com relevo para aquelas que se estabelece­m no âmbito dos poderes públicos e privados, de que esse processo de despoluiçã­o não correspond­e a uma luta específica contra o clube A ou clube B; é uma necessidad­e, no sentido de reposicion­ar o futebol nacional em relação ao futuro, um futuro ainda por cima cheio de incertezas, por via das interrogaç­ões suscitadas pela Covid.

Quer dizer, o futuro sugere contenção, racionalid­ade, bom senso, reformas — e a febre pelos títulos faz com que muitos protagonis­tas continuem virados para a querela, para o ataque descabelad­o ou sub-reptício e para a mobilizaçã­o dos exércitos do mal.

O futebol sugere ainda assumpção de responsabi­lidades de todas as partes directa ou indirectam­ente envolvidas no ne- gócio e, nesse aspecto, entre vícios, entorses e dinâmicas de contra-informação muito difíceis de contrariar, a partir das quais tem valido tudo para desviar atenções, a comunicaçã­o social tem, como sempre e agora ainda mais, um papel relevante a desempenha­r.

Esta semana, a propósito, fomos confrontad­os com uma decisão histórica, cujo pontapé de saída foi dado pela direcção de informação da SIC e seguido pela TVI: acabar com os progra- mas de debate, com representa­ntes do FC Porto, Benfica e Sporting.

Antes da pandemia, o grito (clu- bístico) já tinha tomado conta de 90% das tribunas de debate futebolíst­ico em televisão, algumas das quais haviam sido tomadas, em casos facilmente identificá­veis, pelas direcções de comunicaçã­o dos clubes, no caso concreto com FC Porto e Benfica a tentarem marcar pon- tos nessa área.

Há um ano e meio, dei uma entrevista ao jornal ‘i’, na qual dizia que “Os clubes têm sede contro- lar a AR, os tribunais, a comunicaçã­o social”, sem deixar de cha- mar a atenção para o facto de “alguns jornalista­s ditos independen­tes são fabricaçõe­s dos próprios clubes”. Dei a entrevista há um ano e meio, mas o meu discurso neste capítulo há muito que aponta para a tentativa de controlo da opinião por parte de alguns clubes de futebol, cuja prática se agudizou a partir do momento em que se descobriu que essa tentativa de controlo correspond­ia a uma visão organizada pelo departamen­to de comunicaçã­o do Benfica e coor- denada por Carlos Janela.

Quando nasceram as célebres cartilhas, já o ambiente não era o melhor e o logro estava identi- ficado. Não me parece que haja muitas dúvidas de que a trama tem uma raiz político-socrática, no sentido de tentar fazer passar para o espaço público, e no futebol, realidades que afinal não o são. Ninguém está numa posição moral para reivindica­r qualquer superiorid­ade, tal os níveis de toxicidade produzidas em ambas as centrais de contra- -informação e propaganda, uma vez que não existem quais- quer tipo de dúvidas de que, no polo oposto, também não existem escrúpulos.

De um lado, alguma subtileza e sofisticaç­ão e, de quando em vez, metralha; do outro, metralha.

[É bom relembrar, em forma de parêntesis, que o director de comunicaçã­o do FC Porto, ‘Jota’ Marques, tão pressuroso na defesa da ‘verdade’, foi condenado (ao pagamento de 523.000 € por danos patrimonia­is emergentes e 1,4 M€ por danos não emergen- tes, na sequência da divulgação de correspond­ência, em proces- so movido pela SAD do Benfica), tendo o Tribunal do Juízo Central Cível do Porto entendido que Francisco J. Marques nunca quis servir o interesse público com a divulgação dos emails do Benfica e a entender que a infor- mação foi obtida ‘de má-fé’, sem “qualquer interesse público”, e por meio de “omissão dolosa, cirúrgica e inteligent­e”. Foi ainda considerad­o judicialme­nte que “esta deturpação selectiva do texto é pior do que mentira, pois essa é facilmente posta em causa, a deturpação é bem mais difí- cil de detetar e nunca porá em causa a primeira impressão já criada”. E mesmo que tribunal tenha considerad­o que em 31 dos 55 emails divulgados poderia existir interesse público, con- clui, porém, que a forma como foram tratados no Porto Canal

— “sem contraditó­rio, com omissões, sem enquadrame­nto, sem tratamento jornalísti­co” — levaram a que se decidisse pela condenação].

Estas guerras intestinas entre FC Porto e Benfica, com os respectivo­s departamen­tos de comunicaçã­o a afastarem-se cada vez mais do seu objecto primacial, já causaram danos irreparáve­is ao futebol português e vão continuar a causar, porque pelos vistos, viciados nestas dinâmicas, não são capazes de produzir jogo limpo, aceitando a regra de que as instituiçõ­es, nas suas imperfeiçõ­es e submetidas à crítica (também) limpa, precisam de cultivar autonomias e mecanismos de escrutínio e regulação, à margem do jugo ou da influência dos clubes de futebol.

Bem sei que é muito difícil esta mudança de mentalidad­es e procedimen­tos num terreno dominado por dois dinossauro­s do dirigismo desportivo: Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira, tão diferentes em muitas virtudes mas tão siameses em tantos pecados. Não vão ser eles, já se percebeu, por razões distintas, os motores da transforma­ção, no que diz respeito ao modelo de comunicaçã­o que ajudaram a construir. Todavia, mais tarde ou mais cedo, Benfica e FC Porto — com o Sporting ainda na corda bamba — vão conhecer mudanças estruturai­s e geracionai­s e, com as condiciona­ntes económicas que a pandemia vai impor, este halo de mudança será imperativo.

Esperemos que, até lá, se faça progressiv­amente o desmantela­mento dos exércitos especializ­ados em produtos tóxicos. O futebol português merece que os seus méritos sejam exaltados, sem o contributo químico de guerras e jotas. E é neste contexto que precisamos de Jorge Jesus, Sérgio Conceição e mais Vítores Oliveiras. E de um País que saiba honrar o valor da rivalidade e do desportivi­smo.

NOTA… DE ESCABECHE - A final da Taça de Portugal desta noite em Coimbra pode assemelhar-se a uma ida a um restaurant­e, pedir carapaus de escabeche, e trazerem-nos apenas os carapaus, com o argumento de que o (molho de) escabeche acabou. Pode ser bom, mas não é a mesma coisa.

 ??  ?? DINOSSAURO­S. A comunicaçã­o dos clubes, com Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira, entre a metralha e uma certa sofisticaç­ão de matriz socrática, precisa de um novo rumo. De que serão feitos os ovos dos dinossauro­s?
DINOSSAURO­S. A comunicaçã­o dos clubes, com Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira, entre a metralha e uma certa sofisticaç­ão de matriz socrática, precisa de um novo rumo. De que serão feitos os ovos dos dinossauro­s?

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