O admirável Rui Pinto
ç Há dias, no início do seu julgamento, Rui Pinto, numa declaração escrita, afirmou que não era um ‘hacker’ e sim um ‘whistleblower’. A distinção é importante, mas tem escassa adesão à realidade. Por definição, um ‘whistleblower’ trabalha na organização em relação à qual denuncia ilícitos. Por isso mesmo, esta condição está protegida, designadamente em matéria laboral. Que se saiba, Rui Pinto nunca foi funcionário da Doyen, da Sonangol, da PLMJ e muito me surpreenderia se, em algum momento, tivesse trabalhado para o Benfica. Mas faz sentido que se queira passar por aquilo que não é: afinal está a ser julgado por crimes cometidos enquanto ‘hacker’, alguém que se intrometeu de forma abusiva nas redes privadas de uma organização.
Estou longe de desvalorizar o efeito corrosivo da corrupção nas nossas sociedades. E, se há progresso social a que temos assistido em Portugal, ele reside, precisamente, na exigência de maior escrutínio em relação à alta finança, ao poder económico e político e, também, ao que se passa no mundo do futebol. Julgo, aliás, que é uma tendência irreversível e que está a chegar mesmo às esferas de poder que se julgavam intocáveis.
Mas uma coisa é defender um escrutínio apertado a todas as esferas de poder, outra, bem distinta, é em nome desse desígnio colocar em causa alicerces fundamentais de um Estado de direito. Há, aliás, uma ponderação de valores que não pode deixar de ser feita: que bem maior é esse que deve levar a que suspendamos mecanismos processuais que nos protegem a todos face à arbitrariedade em que, por definição, assenta a justiça feita por privados? Ainda para mais, como é o caso, assente ela própria em práticas ilícitas, como seja a violação da correspondência privada, designadamente a que é trocada, ao abrigo do sigilo profissional, entre advogados e clientes. Se cedemos nesta matéria, enveredamos por um caminho perigoso, em que a Justiça passará a fundar-se na discricionariedade.
A este propósito vale sempre a pena recordar a frase de reminiscências bíblicas que está vertida no processo penal das sociedades liberais: “Não há árvore má que dê bons frutos.” Um princípio que devemos levar a sério – provas obtidas de forma privada e ilícita incorrem em riscos e afastam-nos de uma Justiça que protege todos, em particular quem nada teme.
A Justiça portuguesa tem muitos problemas, estruturais e graves, mas pensar que os superamos suspendendo princípios basilares de uma sociedade decente é não só equívoco como contraproducente. Ao glorificarmos a ação de um ‘hacker’, limitamo-nos a acrescentar mais problemas aos muitos que já existem, também no mundo do futebol.