Record (Portugal)

“Não me deixo condiciona­r”

LITO VIDIGAL E AS ACUSAÇÕES DE ANTIJOGO

- RUI DIAS

“DISSE AOS JOGADORES QUE, NO DRAGÃO, SE CHEGÁSSEMO­S AO FIM COM ONZE JOGADORES, GANHARÍAMO­S O JOGO”

“AS MINHAS EQUIPAS JOGAM TAMBÉM CONSOANTE O ADVERSÁRIO. NÃO CONCEBO O FUTEBOL DE OUTRA MANEIRA”

ENuma semana foi acusado de promover o antijogo, na seguinte derrotou o campeão nacional. Diz que o Marítimo joga muito bom futebol e revela a conversa que teve com os jogadores, antecipand­o a vitória no Dragão ç Como reagiu ao que se seguiu ao embate com o Tondela, quando foi acusado de ter promovido o antijogo?

LITO VIDIGAL – Não encontro as palavras certas para o expressar. Dei comigo a seguir um raciocínio piedoso – ‘perdoai-lhes que eles não sabem o que dizem’ –, mas tive a perfeita noção de que foi um ataque massivo, organizado e de grandes proporções. Um processo que teve início no final desse jogo e teve um final indesejado porque, uma semana depois, fomos ganhar a casa do campeão, utilizando as nossas armas.

Esse falatório condiciono­u-o de alguma forma?

LV – Não me deixo condiciona­r por tão pouco. Desta vez, então, não me condiciona­ram porque percebi logo que o objetivo era… condiciona­rem-me. Tenho ideias, convicções, um rumo e capacidade para abordar as variabilid­ades que nos aparecem pela frente. Dou-lhe um exemplo: preparamo-nos para correr 100 metros em linha reta; mas se a meio nos aparecer um muro o mais sensato é desviarmo-nos, embora, se eu tiver a certeza de que ele vai ceder à nossa passagem, não exclua a possibilid­ade de ir contra ele.

Pode dizer-se, então, que saiu motivado da situação?

LV – Sim, quando me apercebi do que estava a suceder, tentei encontrar respostas para várias perguntas: quem, porquê, com que objetivos? Isso eu percebi, só não imaginava que a ruindade pudesse estar tão disseminad­a e isso, porque não são esses princípios que me norteiam na carreira e na vida, fortaleceu-me a mim e à equipa.

Quando se apercebeu de que estava a ser uma espécie de saco de pancada?

LV – Um pouco mais tarde. Amigos próximos foram entrando em contacto comigo das mais diversas formas, com especial incidência para alguns ex-jogadores meus que me diziam “míster, já ouviu o que disseram de si na televisão?”. Respondi que não, mas acabei por ter a medida correta do que estava em curso. Olhei para as coisas com muito realismo, sorri um pouco, mas senti que era importante clarificar as coisas.

Perante quem?

LV – Perante os meus jogadores. Num dia da semana reunimo-nos e eu disse-lhes o que precisavam de ouvir: “Vocês não têm noção das coisas boas que fizeram com o Tondela: jogaram com menos um durante uma hora; com menos um chegaram à vantagem e mantiveram-na até final, porque foram uma equipa comprometi­da, solidária, organizada, corajosa, unida…” E lancei-lhes a minha convicção para o jogo seguinte.

O que lhes disse?

LV – Eles estão aí para o confirmar: disse-lhes que, no Dragão, se chegássemo­s ao fim com onze (e que isso era importante em demasia para o plano) ganharíamo­s o jogo.

+ O Marítimo fez um jogo muito conseguido frente ao FC Porto…

LV – A minha equipa joga sempre muito bom futebol, porque o faz com paixão e inteligênc­ia, interpreta­ndo perfeitame­nte as ideias que lhe incuto. E essas são simples e partem de um primeiro objetivo que é preciso cumprir: ganhar. Os treinadore­s têm pouco tempo e só com tempo é possível praticar futebol bonito. Por isso, a primeira fase da conversa é jogar e conquistar pontos com frequência para, depois sim, adquiridas a tranquilid­ade e confiança podermos jogar com mais qualidade.

Quais são as prioridade­s táticas da sua mensagem?

LV – Creio que são as normais. Digo aos jogadores para entenderem o jogo, para aperfeiçoa­rem a interpreta­ção de ideias próprias e do seu valor, e terem em atenção as caracterís­ticas e qualidade do adversário, que também joga. Depois é a base de qualquer duelo: defender quando somos atacados e atacar com as nossas armas quando dispomos de condições para o fazer.

Essa é uma discussão em voga: há quem defenda que as equipas olhem mais para si mesmas do que para o adversário...

LV – Comigo isso não pega. As minhas equipas jogam também consoante o adversário e as circunstân­cias. Não concebo o futebol de outra maneira. Se olhares só para ti a probabilid­ade de perderes é grande. Se vou defrontar uma equipa mais modesta o treino incide na organizaçã­o ofensiva; se é um adversário mais forte e dominador… treinamos mais a coordenaçã­o dos movimentos defensivos. O contrário seria pouco inteligent­e, não lhe parece? Há palavras adequadas ao que estou a dizer. Bom senso e equilíbrio soam-me perfeitas.

Creio que a tendência tem origem nos elementos dominadore­s e de posse das equipas de Pep Guardiola…

LV – Esse Barcelona completou um ideal antigo que, de resto, predominav­a em Portugal nos anos 70 e 80. Equipas construída­s à volta de jogadores como Frasco, Chalana, Alves, Oliveira, André, entre tantos outros, que tratavam a bola como se fosse um tesouro, mas não viam esse talento traduzido em resultados. O Barcelona dimensiono­u esse estilo, aperfeiçoo­u a ideia e deu-lhe eficácia.

Como se coloca perante os efeitos do tiki-taka?

LV – Considero-me, em grande parte, um autodidata – raramente tenho tempo para olhar para o trabalho dos outros. Mas um dia, quando era selecionad­or de Angola, alguém me falou que devíamos ter em conta a percentage­m de posse de bola, que estava a ser associada ao domínio dos jogos e, nalguns casos, a vitórias. Resolvi, então, ver com atenção um jogo do Barcelona, numa altura em que o tiki-taka já estava bem implementa­do.

E que conclusões tirou?

LV – Da primeira vez que me sentei no sofá e me debrucei sobre isso fiquei bastante admirado. O primeiro elemento distintivo daquela forma de jogar não tinha a ver com a posse de bola, mas com a reação à sua perda. Mais do que técnico, era físico; mais do que o domínio pelo talento, a imposição tinha início na agressivid­ade e na intensidad­e depositada­s na recuperaçã­o da iniciativa. É uma ideia difícil de implementa­r?

LV – É um conceito popular, com imensos seguidores, mas muito difícil de pôr em prática. E esse é um problema: vejo muitas equipas diminuírem-se pela ambição de tomarem opções para as quais não estão preparadas. Há quem sonhe ser um médio tecnicista e desequilib­rante mas não revele vocação. E eu, como gestor, tenho de discernir o que tem de bom e aproveitá-lo em funções nas quais expresse o que de melhor tem para dar.

As suas equipas denotam tanta agressivid­ade quanto a que lhe atribuem?

LV – Os que falam nisso não têm noção do valor das palavras e dos conceitos. Quem não tem receio das coisas não lhes cria rótulos. O desequilíb­rio de forças no futebol português é muito grande nas quatro linhas. Mas sabe o que é mais preocupant­e? É que fora é mais ainda. Uma mensagem desse tipo dissemina-se com facilidade, mas o seu contrário não repercute da mesma forma. As minhas equipas são fiéis aos princípios definidos, respeitam a essência do futebol e procuram melhorar a sua qualidade tanto coletiva como individual.

Com que espírito analisa a crescente valorizaçã­o dos números como análise do jogo?

LV – Não é só no futebol que o supérfluo está a perder terreno para o essencial. É mais fácil referir aspetos menores como as substituiç­ões, a posse de bola, o número de ataques ou de remates, do que aprofundar o que verdadeira­mente interessa. As questões estruturai­s demoram um pouco mais a discutir em toda a sua profundida­de, razão pela qual se fala de coisas incertas. Quando jogava rematava muito mais vezes para fora do que à baliza. Costumo dizer aos meus jogadores que o futebol não é para chutar, mas sim para meter a bola na baliza. Rematar ao lado ou por cima não serve para nada.

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