A irrefreável sede dos milhões
A COMUNICAÇÃO DA CRIAÇÃO DE UMA REACIONÁRIA SUPERLIGA FECHADA, COM O OBJETIVO DE TORNAR OS MAIS RICOS AINDA MAIS RICOS, ABALOU AS ESTRUTURAS, MAS FRACASSOU DE FORMA RETUMBANTE, AFUNDANDO-SE COMO UM ‘TITANIC’. A UEFA GANHOU O BRAÇO DE FERRO, MAS ESTÁ DISTANTE DE SER O LADO BOM DE UMA FITA QUE TEM FEITO MEDRAR DESDE QUE ABRIU AS PORTAS DA LIGA DOS CAMPEÕES A VICE-CAMPEÕES
1 O anúncio do novo formato da Champions, com um espírito cada vez mais subvertido pela perda de peso dos campeões nacionais, foi o mote para uma manobra de diversão de 12 clubes que pretenderam elevar o conceito de reacionarismo futebolístico. Mais empenhados em afiançarem assento na administração e no consórcio financeiro que ditará as leis de uma Liga dos Campeões com mais quatro emblemas e, principalmente, mais uma centena de jogos, o que garantirá receitas mais multimilionárias à UEFA (que, quase sem custos, as abriga e as dissemina sagazmente, sob a capa de diligenciar o desenvolvimento do futebol), Real Madrid, Barcelona, At. Madrid, Man. United, Liverpool, Arsenal, Chelsea, Tottenham, Man. City, Inter, Milan e Juventus anunciaram, domingo à noite, a criação de uma (ainda mais) elitista Superliga. Na escaramuça pelo controlo do futebol-negócio, com ambas as partes apartadas da essência do futebol-paixão, a conceção de uma Superliga fechada, sem correlação entre o esforço e o êxito no seu acesso, estava condenada a dissipar-se. O que sucedeu.
2 É um equívoco pensar que o futebol reacionário sofreu uma derrota pungente. Muito menos que a UEFA, que vê o seu poder robustecido com o descalabro da Superliga, absorva o papel de boazinha de uma fita que tem feito medrar, desde que, em 1997/98, a sua principal competição abrigou oito vice-campeões. O que se expandiu, a partir de 1999/2000, com o ingresso dos quatro primeiros dos campeona- tos dos três países com melhor ranking – até 2001/02, Itália, Alemanha e Espanha; depois, entre 2002/03 e 2011/12, Espanha, Itália e Inglaterra; e, finalmente, entre 2012/13 e 2017/18, Inglaterra, Espa- nha e Alemanha – e dos três primeiros dos países entre o quarto e o sexto lugar do ranking, espaço em que Portugal se imiscuiu várias vezes. Até que a UEFA sentiu necessidade de mimosear, a partir de 2018/19, quatro representantes a um ‘big four’ definitivamente definido por Espanha, Alemanha, Inglaterra e Itália. Importa não olvidar que este processo começou a esboçar-se em 1991/92, quando a última Taça dos Campeões Europeus incluiu uma fase de grupos após a segunda eliminatória. Torna-se, as- sim, fácil perceber o que mudou nos 29(+1) anos de Champions. Desde aí, apenas dois vencedores não saíram dos ‘big five’ – Ajax (1994/95), ainda num formato só com campeões, e FC Porto (2003/04) –, que são também as únicas exceções no rol de 60 fina- listas (já podemos associar os de 2020/21). Se olharmos para o espe- tro de finalistas entre 1986 e 1991, os últimos seis anos de competição democrática, quatro dos seis vencedores foram Steaua (1985/86), FC Porto (1986/87), PSV (1987/88) e Estrela Vermelha (1990/91). Além disso, o Benfica (1987/88 e 1989/90) chegou a duas finais. O que significa que entre 1985 e 1991, período em que os ingleses estiveram afastados por causa de Heysel, Portugal foi o país com mais finalistas (3), supe- rando Itália e Roménia (2), além de Espanha, Alemanha, Holanda, Jugoslávia e França (1). É fácil ver quem ficou a perder e quem ficou a ganhar, além da UEFA.
3 Florentino Pérez, Andrea Agnelli e os imberbes estadunidenses – presos à cultura espetáculo-desportiva, o que faz com que discernir o significado do ‘You’ll never walk alone’ seja tão complexo como apreender a lei do fora-de-jogo – que comandam Man. United, Liverpool e Arsenal, os principais rostos da Superliga, falharam em toda a linha. Num Mun- do de aparências, não organizar uma apresentação num local histórico, elucidando os protagonistas – futebolistas e treina- dores – e, principalmente, o mais relevante dos clientes – os adeptos – sobre o quão entusiasmante poderia ser a Superli- ga, assim como o plano futuro para os campeonatos nacionais e para a Liga dos Campeões, é um erro típico de lunáticos que só olham para o seu umbigo. Pior: ficou claro que a Superliga avançou atabalhoada, o que se percebeu pela forma como uma prova com 14 fundadores só tinha 12 identificados, contrariando a ideia de ter sido urdida durante vários anos. Como em qualquer decisão tomada em cima do joelho, não houve capa- cidade para persuadir o Bayern (defendeu a Bundesliga e a Champions) e o PSG (dirigido por Nasser Al-Khelaifi, muito próximo de Ceferin, o presiden- te da UEFA), que representariam os restantes países do ‘big five’, a participarem na rebelião. Por isso, a oposição contunden- te de adeptos, futebolistas e treinadores, inúmeros pertencentes aos quadros ou com liga- ções afetivas ao ‘grupo dos 12’, poderá ter consequências para o seu futuro como líderes. Até porque basta olhar para um quadro apresentado, no dia 18, pela Swiss Ramble, para perceber que as contas de 11 dos 12 fundadores – o Liverpool não as deu a conhecer – em 2019/20 (só abrangem os primeiros três meses de pandemia), indicam que estouraram em conjunto 1,39 biliões de euros em transferências. O que é um claro atestado de lideranças desarvoradas, cujo preço – o endividamento extremo – podia ser atenuado pela criação de uma competição multimilionária em circuito fechado. O que garantiria que Florentino se continuasse a pavonear como rei do mercado, assegurando Mbappé e Haaland.
4 Percebeu-se também que a inspiração da Superliga na NBA e na NFL enfermava de hipocrisia aterradora, bem espelhada na diferença de ter apenas três países em 12 fundadores. A NBA tem 21 estados representados, a que se juntam Washington DC e a canadiana Toronto, em 30 participantes, enquanto a NFL desfruta de 22 estados em 32 emblemas. Mas, acima de tudo, percebeu-se que os 12 fundadores da Superliga que se afundou como o ‘Titanic’, são liderados pela ganância. Não lhes basta o dinheiro que têm e os balúrdios que dilapidam. Ambicionam mais, mais e mais, para conquistar o campeonato de maior pedante do mercado, num exercício típico do capitalismo selvagem. Esquecendo-se, como sempre, que a base de sustentação do futebol é existirem clubes médios, pequenos ou minúsculos, cujo maior título é o de possibilitarem que miúdos se divirtam e possam vir a aparecer em patamares mais elevados. Essa base da pirâmide no contexto atual, reforçado pela pandemia, corre riscos de sobrevivência e necessita de ser preservada. Pelos clubes reacionários, que deviam perceber que a secariam definitivamente com a Superliga, como também pela FIFA e UEFA. Porque é dessa base que brota o talento e emergem os adeptos que não se satisfazem só com ‘highlights’.