A coragem de Ricardo Nascimento
O TÉCNICO MANTÉM A MESMA REBELDIA QUE O CARACTERIZOU COMO JOGADOR. A DENÚNCIA DE RACISMO E XENOFOBIA NO VITÓRIA DE SERNACHE É UM GRITO DE ALERTA COM URGÊNCIA NACIONAL
SÃO CADA VEZ MAIS AS VOZES QUE CONFIRMAM AS REVELAÇÕES QUE CAUSARAM IMPACTO
1 Ricardo Nascimento foi sempre um caso à parte no futebol português. Pelo seu talento imensurável, pela sua rebeldia incontida e pelo desprendimento em relação às amarras do politicamente correto. Aos 47 anos, na pele de treinador, o antigo craque que se notabilizou na posição 10 podia ter usufruído do palco que a receção ao Rio Ave para a Taça de Portugal lhe iria proporcionar. Foi em Vila do Conde que relançou a carreira e chegou ao FC Seoul, onde o incrível ano de 2006 lhe garantiu um estatuto lendário que o leva a estar permanentemente em contacto com fãs coreanos através das redes sociais. Só que Ricardo, mesmo mais maduro e focado, não adulterou a sua essência. O desafio de treinar o
Vitória de Sernache, no Campeonato de Portugal, foi aceite como repto de crescimento. Mesmo perante um presidente propenso a cometer excessos resistiu até onde foi possível em defesa dos seus jogadores. Finalmente, num ato de coragem, bateu com a porta e, instado por Record, denunciou tudo o que de muito grave se passava.
2 Racismo e xenofobia são sentimentos que não encaixam com um futebol cada vez mais cosmopolita. Da mesma forma que um presidente de qualquer clube, de qualquer escalão, não deveria poder transpor a linha da tirania e do abuso. Recolher depoimentos de ex-jogadores do Vitória de Sernache que, mesmo admitindo terem sido vítimas de comentários arrepiantes, os minimizam, assus- ta se refletirmos sobre qual será a sua normalidade. Não é preciso ter memória excecional para nos recordarmos das operações do SEF que, só em janeiro, abriram 40 inquéritos-crime por auxílio à imigração ilegal e tráfico de seres humanos no Campeonato de Portugal e escalões distritais. Isto tendo detetado 110 atletas em situação irregular desde 2019. A máscara de sucesso do futebol não-profissional não pode tornar-se um biombo cor de rosa que encobre realidades de trevas.
3 Já agora, se o canal que é propriedade da FPF, e que vai transmitir o Vitória de Sernache-Rio Ave, não se quiser demitir de fazer jornalismo, até pode usar sua mistura entre ‘O Preço Certo’ e ‘Quem quer ser milionário?’ com que ocupa tantas horas de emissão e ver se alguém por lá acerta em quantos jogadores e técnicos que passaram pelo clube da Sertã confirmaram, publicamente, as revelações de Ricardo Nascimento sobre o tratamento que o presidente António Joaquim alegadamente dispensava aos “pretos e brasileiros”. Em ‘on’ já são pelo menos seis fora aqueles, muitos, ainda no plantel até, que pedem desculpa mas não falam por medo de represálias. O CD da FPF abriu um inquérito, mas o receio é que existam mais Sernaches ocultos nas profundezas da bola e sem um Ricardo Nascimento que se revolte.