O que verdadeiramente temos
1 No passado dia 22, na edição online, este jor- nal publicou uma entrevista com um treinador de futebol que entendeu, perdoe-se-nos a expressão, vomitar de forma violenta, do- lorosa, chocante, tudo o que lhe ia no seu ser a propósito de ocorrências racistas e xe- nófobas, que denunciou de forma corajosa. Aliás, o primeiro facto a salientar é mesmo a coragem - propor- cional à dor sentida - em de- nunciar publicamente situações de racismo, xenofobia, homofobia ou qualquer outra atentatória do desporto e da sua integridade. Não será fácil, num futuro próximo, que esse treinador venha a encontrar clube onde possa prosseguir a carreira, não por serem todos os dirigentes desportivos do calibre do agora denunciado, mas mais por que não é manifestamente seguro a qualquer entidade patronal contratar alguém que ouse denunciar eventuais atitudes do mesmo ou semelhante tipo. Ao denunciar o sucedido num clube de que era treinador, este agente desportivo entrou diretamente na bolsa de denunciantes, não obstante ter agido bem, e isso é algo peri- goso para qualquer organização.
2 Neste jornal dedicámos uma coluna dedicada a um Desporto Hu- mano e, não obstante formalmente ela não subsistir, aqui estamos para afirmar, abstraindo agora do caso concreto e dos seus concretos contornos, que o racismo, a xenofobia, a homofobia e tantos outros indicadores discriminatórios vivem no seio do desporto nacional. Como poderia não o ser se vivem na nossa sociedade? Por vezes sou confrontado com pessoas que prezo que me declaram que por- ventura estamos a ir longe de mais, pois já quase nada se pode dizer, mesmo que seja no momento ‘quente’ da competição desportiva, do jogo, ou ‘em jeito de brincadeira’. O Mundo é, felizmente, outro e não aquele em que cresceram. O que verdadeiramente está em causa e impede a eliminação de todas as discriminações é, mais do que, por exemplo, o patente racismo, precisamente esta atitude compreensiva, omissiva a todo o momento, de não colocar travão, ao não se sentir ofendido e maltratado por quem exprime essas versões ‘pacíficas’ de discriminação. Não há brincadeiras, não há visão benéfica do que quer que seja neste domínio. A pronta resposta tem de estar presente a todo o
O ESTADO E AS ORGANIZAÇÕES DESPORTIVAS DEVIAM APROVEITAR A CORAGEM DE RICARDO NASCIMENTO
momento. E seria muito bom que o Estado e as organizações desportivas aproveitassem a coragem deste treinador, para agir agir mesmo, concretizando reais estratégias de combate à discriminação. Também já estamos fartos de campanhas de sensibilização e semelhantes atos. Há que ir mais longe e com vigor.
3 Os meus cumprimentos para o Ricardo Nascimento (que não conheço, embora tenha conhecido o seu grito de alma). Só não concordo com a sua máxima no final da entrevista: é impossível ter sucesso no futebol quando a vida e a condição humana não são respeitadas. Infelizmente, diz-me a vida (também desportiva), está errado.