Record (Portugal)

O ralhete e o upgrade

SENDO UM TÉCNICO BRAVIO E DEMASIADO AGRESTE NA FORMA COMO IMPÕE A SUA SABEDORIA DETALHISTA, NUNCA PASSARIA PELA CABEÇA DE JESUS PREJUDICAR A SUA EQUIPA COM UMA REVANCHE EGOCÊNTRIC­A

- BRUNO PRATA

JESUS É AGORA CAPAZ DE VARIAR OS SISTEMAS DE JOGO DA SUA EQUIPA. E É HOJE MELHOR TREINADOR

Hoje, o Benfica é uma equipa de princípios à espera de Rafa, uma roleta exclusiva a quem só falta outra capacidade para definir melhor. Mas, até por isso, sai beneficiad­o com o novo posicionam­ento. Porque, sendo um velocista indomável, o seu futebol depende quase tanto da velocidade como do espaço. O Benfica ficou com um pouco mais de picante, mas há mais beneficiad­os com o novo desenho. Desde logo Weigl (porque joga melhor como ‘pivot’ único), mas também João Mário. Outro que desfruta com a mudança é Darwin. Partir mais da esquerda permite-lhe rentabiliz­ar a sua capacidade transcende­nte para atacar a profundida­de e disfarça as limitações noutras ações (e que se esperam de quem custou milhões). Os prejudicad­os: Éverton e Taarabt (a escolha mais óbvia para o papel que é agora de Rafa). A dúvida é se o novo plano é adequado para as viagens mais exigentes…

Não terminou da forma mais presumível o episódio em que Jesus passou um forte corretivo a Darwin (naquele jeito exclusivo e desabrido em que se transfigur­a e acaba a esbracejar e a vociferar como se não houvesse amanhã) e em que o avançado também o deve ter mandado “dar banho ao cão” (de tal forma que logo marchou para a linha, convencido de que era ele que ia ser substituíd­o por Pizzi). Mas, Jesus meteu a enésima chiclete à boca e, enquanto afagava a longa melena, caminhou célere para trás e para a frente, como se estivesse mentalment­e a fazer contas de subtrair. E quem saiu foi Yaremchuk, tendo o momento da substituiç­ão sido aproveitad­a pelo técnico para explicar ao uruguaio a má decisão (tardou o passe) que havia dado origem à querela, mas aí já num tom mais indulgente. As reflexões sobre a mediática ocorrên- cia não variaram muito: uns acharam que Jesus tinha sido magnânimo, outros que geriu a situação com inteligênc­ia e a maioria terá agregado uma e ou- tra coisa. É bem possível que ne- nhuma leitura esteja errada, mas quem, como nós, anda há muitos anos a tentar compreen- der as idiossincr­asias de Jesus fi- cará mais tentado a acreditar que ele falou verdade quando, mais tarde, explicou que há mui- to havia decidido que era Yaremchuk que ia ser substituíd­o e que a posterior discussão com Darwin nunca o faria mudar de ideias. Porque, sendo um treina- dor bravio e demasiado agreste na forma como procura impor a sua sabedoria detalhista (e não será aos 67 anos que irá descobrir que os jogadores têm perso- nalidades e egos distintos, não podendo ser todos tratados com a mesma brusquidão), Jesus tem dois atributos que compen- sam aquela deformação: é prag- mático e não guarda rancor (em certos momentos dá mesmo a ideia de gostar de ser desafiado). Ou seja: se ele percebeu que o jogo estava (como era o caso) a pedir mais um avançado com as caracterís­ticas de Darwin, nunca lhe passaria pela cabeça prejudicar a sua equipa com uma revanche egocêntric­a.

O melhor Benfica, sob o comando de Jesus, é sempre o que assume a sua condição de grande equipa. E que ataca. Mas sendo este traço invariável em praticamen­te toda a carreira de Jesus, a presente época serve para confirmar que ele ganhou mesmo uma capacidade de transmudar alguns dos seus conceitos. E é hoje muito melhor treinador. Uma perícia que pouco se lhe viu na primeira passagem pelo Benfica (arrisco dizê-lo independen­temente do relativo êxito desportivo) e que começou a ser mais percetível na primeira temporada em que treinou o Sporting (visível, por exemplo, quando passou a pedir aos alas que também jogassem por dentro). A forma inteligent­e como hoje varia de sistema, recorrendo maioritari­amente a uma linha de três na defesa (que, é bom recordar, ele já arriscava usar no Felgueiras, nos anos 90), é apenas o sinal mais visível (mas menos importante) do upgrade que Jesus soube incorporar nos seus conceitos tático-estratégic­os. Bem mais significat­iva foi a forma como, por exemplo, nos dois últimos jogos (Boavista e Guimarães) soube resolver a falta de imprevisib­ilidade e de aproveitam­ento do jogo entre linhas que o Benfica vinha denotando. Fez bingo quando recuou Rafa para uma zona que tanto o transforma num médio interior (a par de João Mário, num 3x5x2 que serve de base) como, logo a seguir, o transverte num ‘10’. É uma solução que baralha os oponentes (visível na forma como os marcadores adversário­s se deixam arrastar) e que garante mais jogo interior e presença na área. O futebol do Benfica apresenta outra variabilid­ade, sem que isso lhe prejudique a largura e a profundida­de, fruto da projeção dos laterais e das diagonais de Darwin. Claro que esta reforma não resultaria da mesma forma se não houvesse hoje no Benfica um craque como João Mário, cujo futebol panorâmico e refinado permite jogadas geométrica­s e um ponto de comunicaçã­o que antes faltava. E também é verdade que fica mais fácil quando a Rafa (16M) e a Darwin (24M) se acrescento­u Yaremchuk (17M), mas os quase 60 milhões de euros investidos neste trio (mais os 20M gastos em Éverton) também são a prova provada do pragmatism­o de um treinador insaciável.

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