Um Sheriff que assalta a Europa
O PASSAGEIRO MAIS INOPINADO DA CHAMPIONS’2021/22, QUE COLOCOU A MOLDÁVIA NO MAPA DA PRINCIPAL COMPETIÇÃO DE CLUBES DA UEFA, LIDERA SÓ COM TRIUNFOS UM GRUPO COM REAL MADRID, SHAKHTAR E INTER. MAS A HISTÓRIA DO SHERIFF, CLUBE FUNDADO EM 1997 NA CIDADE DE TIRASPOL, É CONSTRUÍDA A PARTIR DA NEGAÇÃO DA NACIONALIDADE MOLDAVA, COMO PRINCIPAL ESTANDARTE DA TRANSNÍSTRIA
Poucos acreditariam que uma equipa que começou a época oficial com duas derrotas, perdendo a Supertaça da Moldávia, para o FC Stînful Gheorge, e iniciando o campeonato com uma derrota caseira ante o FC Balti (0-1), conseguisse o primeiro apuramento da sua história para a fase de grupos da Champions, ultrapassando quatro pré-eliminatórias, em que se digladiou com Dínamo Zagreb, Estrela Vermelha, Alashkert e Teuta, sem qualquer derrota. Muito menos que, após duas jornadas da principal competição de clubes da UEFA, se afirmasse como líder isolado de um grupo com Real Madrid, Inter e Shakhtar, abichando seis pontos. O Sheriff, clube fundado em 1997, logo sem qualquer passado no ludopédio soviético, conseguiu-o, alvoroçando o cosmos futebolístico, que se deleitou com uma das maiores humi- lhações da insigne narrativa europeia dos merengues, vergados, no Bernabéu, a derrota por 1-2.
Mergulhar na história de um clube com apenas 24 anos de existência pode parecer um exer- cício desinteressante, adensado por uma esteira de 19 títulos nacionais conquistados desde 2000, o que reflete uma superioridade inequívoca sobre a concorrência. No caso das vespas de Tiraspol, cidade capital da Transnístria, uma autoproclamada república socialista e independente da Moldávia na fronteira com a Ucrânia, não o é. Tudo começa e termina exatamente aí: na recusa fervorosa da nacionalidade moldava, assumindo-se como um estandarte da Transnístria, que glorifica a ligação à Rússia, para manifestar a supremacia lo- cal sobre o resto do país. Por isso mesmo, entre os 29 jogadores que constituem o atual plantel, apenas 5 são moldavos, contando com tempos de utilização muito residuais. A ideia passa pela constituição de uma verdadeira multinacional, em que é visível a aposta em atletas africanos – 2 ganeses, 2 malianos, 1 costa-marfinense, 1 nigerino, 1 malauiano, 1 guineense – e sul-americanos – 3 brasileiros, 2 colombianos, 1 peruano (Gustavo Dulanto, central canhoto, dispensa- do pelo Boavista no último mercado de inverno) –, a que se juntam 3 gregos, 1 bósnio, 1 esloveno, 1 trinitário, 1 uzbeque, 1 macedónio, 1 sérvio e 1 luxemburguês. Além disso, o Sheriff costuma en- tregar o comando técnico a treinadores estrangeiros, normalmente suportados por adjuntos de diferentes latitudes.
A fundação do clube começou a ser delineada em 1993, quando antigos membros da KGB erigiram uma empresa de segurança na Moldávia chamada Sheriff. As relações próximas ao governo da Transnístria contribuíram para a edificação de um verdadeiro império em forma de polvo, com tentáculos que se estendem aos supermercados, aos postos de gasolina, à construção de edifícios, a uma fábrica de telemóveis, e a uma cadeia de televisão, a que se juntam acusações de atividades ilegais como o con- trabando de cigarros e armas. E, claro, a um clube de futebol, que começou a competir no terceiro escalão, sob a designação de Tiras Tiraspol, somando duas promoções consecutivas em 1997 e 1998, até se transformar no avas- salador FC Sheriff, tal como o co- nhecemos, que não demorou a exibir um estádio moderno, construído entre 2000 e 2002, e a criar um centro de treinos distinto. O que explica a hegemonia no futebol moldavo, com 19 cam- peonatos em 23 participações na divisão maior, além de 10 Taças, 7 Supertaças, e a participação em 3 fases de grupos da Liga Europa. Até alcançar o maior feito da sua história ao chegar à fase de grupos da Liga dos Campeões, na sua 19.ª participação na prova.
Em funções desde dezembro de 2020, Yuriy Vernydub, técnico ucraniano de 55 anos, que se destacou ao serviço do Zorya Luhansk, emblema que dirigiu durante 8 anos, e que, ao conquistar o título bielorrusso, em 2020, pelo Shakhtyor Soligorsk, é o rosto do sucesso europeu das vespas salteadoras. Com um trajeto de 30 triunfos (e apenas 2 derrotas) em 37 jogos oficiais, que incluem 10 partidas invictas na Champions, Vernydub abdicou do 3x4x2x1 com que começou o exercício, retornando ao 4x2x3x1, com que conduzira o clube ao título moldavo em 2020/21. Habituado a um papel dominador no pouco competitivo campeonato interno, em que tem a missão de encontrar espaços ante equipas que se remetem, quase sempre, a blocos baixos, que não se distinguem pela boa organização defensiva, o Sheriff tem conseguido vestir um fato cínico na sua versão europeia, o que não significa remeter-se a uma defesa obstinada. Bem pelo contrário. O êxito tem sido desenhado ao não abdicar totalmente de ter bola, mesmo percebendo a necessidade de os tempos de posse serem muito mais curtos, o que obriga a tornar os ataques mais velozes e verticais, tanto em organização ofensiva como, principalmente, a metamorfosear a transição ofensiva em contragolpes com investidas mais veementes à profundidade. Por isso mesmo, os 7 tentos apontados em 4 partidas ante Real Madrid, Shakhtar e Dínamo Zagreb, surgiram a partir dos corredores laterais.