O turbante do Newcastle
A RECEITA: INVESTIR EM CLUBES COM MEDIATISMO E TRADIÇÃO, MAS EM CRISE FINANCEIRA OU NUMA FASE DE MENOR ESPLENDOR DESPORTIVO, PORQUE ISSO GARANTE A RECETIVIDADE DOS ADEPTOS
COM TANTA ILUSÃO, EM POUCOS DIAS AS RECEITAS DE MERCHANDISING DO CLUBE TRIPLICARAM
Envergando o seu impecável fato de corte italiano, Yasir Al-Rumayyan (o presidente designado pelo príncipe árabe) e a mediática empresária britânica Amanda Stavelev (que já tinha ganho 10 milhões de euros quando esteve envolvida na compra do City por Abu Dhabi e que, agora, garantiu 10% do Newcastle ao intermediar a venda deste ao consórcio da Arábia Saudita) foram reagindo, na bancada VIP, às incidências do jogo (o Newcastle esteve a vencer o Tottenham, mas acabou derrotado por 2-3) como se fossem adeptos do clube de Bobby Robson desde pequeninos…
Conta-se que o sheik Mansour bin Zayed, meio-irmão do emir de Abu Dhabi, hesitou quando os seus assessores o aconselharam a comprar o City. “Mas porque não compramos antes o Real Madrid?”, terá reclamado. E não terá ficado plenamente convencido mesmo quando lhe explicaram que o clube espanhol (tal como o Barcelona, o Athletic Bilbao e o Osasuna) não era uma sociedade de capital, antes uma associação em que os adeptos afiliados é que definem quem administra. Mansour lá acabou por se satisfazer com a compra do City (que em 2008 se tornou no primeiro clube-estado), mas este episódio ajuda-nos a compreender a motivação e o modus operandi tanto do oligarca russo Abramovich (em 2003, comprou o Chelsea por 353 milhões de euros), de Nasser Al-Khelaïfi (CEO do fundo de investimentos vinculado ao governo do Qatar que, em 2001, adquiriu o PSG) e, principalmente, de Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita que recentemente pagou 353M€ por 80% do depreciado Newcastle. Mais do que realizar bons negócios, todos eles pretendem melhorar a imagem pessoal e dos seus países, onde o oligopólio nem sequer é a principal deformação. Comprazer o alter ego, mesmo que à custa do desembolso de milhões, é algo que igualmente os distingue. A metodologia usada também não va- ria muito: investir em clubes com o mínimo de mediatismo e tradição, mas que estejam em crise financeira ou numa fase de menor esplendor desportivo, porque isso garante, à partida, boa recetividade dos adeptos.
A fórmula já havia sido ensaiada quando, por exemplo, Peter Lim, um bilionário de Singapura, comprou o Valência, quando a Arábia Saudita entrou no Almeria através do empresário Turki Al-Sheikh, quando a monarquia do Bahreim se assenhorou do Córdoba ou quando o sheik qatari Nasser Al-Tani comprou o Málaga. Mas o método usado nunca tinha resultado de forma tão instantânea como nestes dias se viu no Newcastle. Na receção ao Tottenham, vários adeptos dos ‘magpies’ não hesitaram em apresentar-se em St. James’ Park de turbante (ghuthrain) e/ou de vestes brancas (dishdasha), sendo que alguns ainda exibiam nas mãos maçarocas de 20 libras com a efínge da rainha de Inglaterra. Mais do que dar as boas-vindas aos representantes do novo dono, afigurou-se como uma for- ma de irradiar a expectativa de ver o Newcastle transformado em mais um titã do futebol euro- peu. A ilusão disparou de tal forma que, em poucos dias, as recei- tas de merchandising triplicaram (as camisolas de tamanho M para mulher esgotaram).
O clube do noroeste de Inglaterra tem um peso enorme na economia da região. Exemplo disso foi quando a Universidade de Newcastle explicou que a descida de divisão do clube, no início do século, tinha contribuído em muito para a perda de 9% de estudantes estrangeiros interessa dos em fazer ali a sua pós-graduação. Ora, o Newcastle segue hoje na penúltima posição, sem nenhum triunfo nas oito jornadas realizadas, situação perigosa num clube que tem um estádio a precisar de remodelações e cujas restantes instalações desportivas não têm o nível médio da Premier League. Mantém uma fervorosa massa adepta, mas ganhou a última liga em 1929 e a última Taça em 1955.
Este cenário explica o desfastio dos adeptos, que há muito contestavam as promessas não cumpridas do chinês Mike Ashley, proprietário do clube nos últimos 14 anos. Mais a mais porque os tabloides titularam que bin Salman tem uma fortuna estimada em 320 mil milhões de euros, 11 vezes superior à do dono do City. E que já gastou mais num quadro de Salvador Dali do que na compra do Newcastle. Apesar de a nova gerência garantir que, em janeiro, só irá investir pouco mais de um quarto dos 200 milhões possíveis (limite em conformidade com as regras da Premier League), os adeptos esperam novos craques e um novo treinador – no final do jogo de domingo, Steve Bruce saiu cabisbaixo quando os adeptos lhe dedicaram um cântico (“Vais ser despedido pela manhã”). E já poucos ligam ao protesto que a Amnistia Internacional e a maioria das ONG’s fizeram contra a entrada de um hierarca árabe que viola sistematicamente os direitos humanos.