Record (Portugal)

O turbante do Newcastle

A RECEITA: INVESTIR EM CLUBES COM MEDIATISMO E TRADIÇÃO, MAS EM CRISE FINANCEIRA OU NUMA FASE DE MENOR ESPLENDOR DESPORTIVO, PORQUE ISSO GARANTE A RECETIVIDA­DE DOS ADEPTOS

- BRUNO PRATA

COM TANTA ILUSÃO, EM POUCOS DIAS AS RECEITAS DE MERCHANDIS­ING DO CLUBE TRIPLICARA­M

Envergando o seu impecável fato de corte italiano, Yasir Al-Rumayyan (o presidente designado pelo príncipe árabe) e a mediática empresária britânica Amanda Stavelev (que já tinha ganho 10 milhões de euros quando esteve envolvida na compra do City por Abu Dhabi e que, agora, garantiu 10% do Newcastle ao intermedia­r a venda deste ao consórcio da Arábia Saudita) foram reagindo, na bancada VIP, às incidência­s do jogo (o Newcastle esteve a vencer o Tottenham, mas acabou derrotado por 2-3) como se fossem adeptos do clube de Bobby Robson desde pequeninos…

Conta-se que o sheik Mansour bin Zayed, meio-irmão do emir de Abu Dhabi, hesitou quando os seus assessores o aconselhar­am a comprar o City. “Mas porque não compramos antes o Real Madrid?”, terá reclamado. E não terá ficado plenamente convencido mesmo quando lhe explicaram que o clube espanhol (tal como o Barcelona, o Athletic Bilbao e o Osasuna) não era uma sociedade de capital, antes uma associação em que os adeptos afiliados é que definem quem administra. Mansour lá acabou por se satisfazer com a compra do City (que em 2008 se tornou no primeiro clube-estado), mas este episódio ajuda-nos a compreende­r a motivação e o modus operandi tanto do oligarca russo Abramovich (em 2003, comprou o Chelsea por 353 milhões de euros), de Nasser Al-Khelaïfi (CEO do fundo de investimen­tos vinculado ao governo do Qatar que, em 2001, adquiriu o PSG) e, principalm­ente, de Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita que recentemen­te pagou 353M€ por 80% do depreciado Newcastle. Mais do que realizar bons negócios, todos eles pretendem melhorar a imagem pessoal e dos seus países, onde o oligopólio nem sequer é a principal deformação. Comprazer o alter ego, mesmo que à custa do desembolso de milhões, é algo que igualmente os distingue. A metodologi­a usada também não va- ria muito: investir em clubes com o mínimo de mediatismo e tradição, mas que estejam em crise financeira ou numa fase de menor esplendor desportivo, porque isso garante, à partida, boa recetivida­de dos adeptos.

A fórmula já havia sido ensaiada quando, por exemplo, Peter Lim, um bilionário de Singapura, comprou o Valência, quando a Arábia Saudita entrou no Almeria através do empresário Turki Al-Sheikh, quando a monarquia do Bahreim se assenhorou do Córdoba ou quando o sheik qatari Nasser Al-Tani comprou o Málaga. Mas o método usado nunca tinha resultado de forma tão instantâne­a como nestes dias se viu no Newcastle. Na receção ao Tottenham, vários adeptos dos ‘magpies’ não hesitaram em apresentar-se em St. James’ Park de turbante (ghuthrain) e/ou de vestes brancas (dishdasha), sendo que alguns ainda exibiam nas mãos maçarocas de 20 libras com a efínge da rainha de Inglaterra. Mais do que dar as boas-vindas aos representa­ntes do novo dono, afigurou-se como uma for- ma de irradiar a expectativ­a de ver o Newcastle transforma­do em mais um titã do futebol euro- peu. A ilusão disparou de tal forma que, em poucos dias, as recei- tas de merchandis­ing triplicara­m (as camisolas de tamanho M para mulher esgotaram).

O clube do noroeste de Inglaterra tem um peso enorme na economia da região. Exemplo disso foi quando a Universida­de de Newcastle explicou que a descida de divisão do clube, no início do século, tinha contribuíd­o em muito para a perda de 9% de estudantes estrangeir­os interessa dos em fazer ali a sua pós-graduação. Ora, o Newcastle segue hoje na penúltima posição, sem nenhum triunfo nas oito jornadas realizadas, situação perigosa num clube que tem um estádio a precisar de remodelaçõ­es e cujas restantes instalaçõe­s desportiva­s não têm o nível médio da Premier League. Mantém uma fervorosa massa adepta, mas ganhou a última liga em 1929 e a última Taça em 1955.

Este cenário explica o desfastio dos adeptos, que há muito contestava­m as promessas não cumpridas do chinês Mike Ashley, proprietár­io do clube nos últimos 14 anos. Mais a mais porque os tabloides titularam que bin Salman tem uma fortuna estimada em 320 mil milhões de euros, 11 vezes superior à do dono do City. E que já gastou mais num quadro de Salvador Dali do que na compra do Newcastle. Apesar de a nova gerência garantir que, em janeiro, só irá investir pouco mais de um quarto dos 200 milhões possíveis (limite em conformida­de com as regras da Premier League), os adeptos esperam novos craques e um novo treinador – no final do jogo de domingo, Steve Bruce saiu cabisbaixo quando os adeptos lhe dedicaram um cântico (“Vais ser despedido pela manhã”). E já poucos ligam ao protesto que a Amnistia Internacio­nal e a maioria das ONG’s fizeram contra a entrada de um hierarca árabe que viola sistematic­amente os direitos humanos.

 ?? ??
 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal