O penálti de Paulinho
TODAS AS SEMANAS SE MONTAM DISCUSSÕES A PROPÓSITO DE UM PEQUENO TOQUE, DE UMA SIMULAÇÃO OU DE UMA ENTRADA A PÉS JUNTOS. PORTUGAL SEMPRE FOI ASSIM, NA DITADURA E AGORA EM DEMOCRACIA. SEM SURPRESAS...
çComo novela, o futebol português é uma maravilha. A riqueza argumentista de jogadores, treinadores e dirigentes produz todas as semanas horas de televisão e notícias que projectam uma espécie de angústia da plenitude. Joga-se o tudo ou o nada. Ou se ganha tudo, ou não se ganha nada. Ou se rouba tudo, no campo, ou depois, através do VAR. Discute-se até à infinitude o tudo de um enorme nada.
Um pequeno toque, uma simulação, uma entrada de pés juntos,
tudo serve para montar a discussão da semana em todos os palcos. Tudo normal, na exacta medida da popularidade que o futebol tem, e na importância social que comporta. Portugal sempre foi assim. Sempre deu mais importância ao maior fenómeno de entretenimento que temos do que propriamente à forma como somos (des) governados. Era assim na ditadura, é assim em democracia. Sem surpresas ou juízos de valor.
Esta semana, coube a Paulinho escrever o argumento
de todos os programas desportivos e conversas de café com o penálti-que-não-terá-sido penálti, no Sporting-Paços de Fer- reira. Foi a metáfora da semana sobre o estado da coisa. Com a temporada a entrar na recta final, na ressaca do Covid e de uma guerra brutal na Ucrânia, cujas sanções terão um efeito de proporções ainda não inteiramente conhecidas, num futebol europeu cheio de dinheiro russo, vamos ter mais umas semanas de conversa à volta de penáltis como o de Paulinho.
Noutros países acontece a mesma coisa.
Mas nesses países também se discutem as mazelas deixadas pelos tempos convulsos que vivemos. Se as primeiras ligas vão ter menos clubes, se vai haver menos jogadores à disposição dos treinadores, portanto, plantéis mais pequenos e menos despesa, se a carga salarial bai- xa, se as fontes de financiamento se diversificam e a bazuca dos direitos televisivos centralizados, se os clubes não dependem de ajudas públicas e empréstimos bancários, se o espectáculo melhora e as mul- tidões enchem todos os estádios, não apenas os dois grandes clubes. Num futebol onde o capital que domina as sociedades anónimas desportivas tende a eliminar progressivamente a velha paixão associativa, não seria mau que se começasse, também por cá, a pensar mais no futuro do futebol do que nos penáltis dos Paulinhos de cada jornada.