Record (Portugal)

Sem-vergonhice

VIEIRA QUER VOLTAR AO BENFICA (E A ENTREVISTA À CMTV VAI SER LIDA NESSE CONTEXTO), MAS OS ADEPTOS NÃO ESTÃO INTERESSAD­OS NAS SUAS OPINIÕES, ANTES NAS SUAS RESPOSTAS

- BRUNO PRATA

VIEIRA FALOU COM UM DESPUDOR TAL QUE PARECIA NÃO TER TAMBÉM CULPAS NO CARTÓRIO

Numa deslocação recente, Rui Costa foi surpreendi­do pelas câmaras televisiva­s a responder “tu sabes lá o que é uma auditoria” à interpelaç­ão de um adepto insatisfei­to. Vai ter mais dificuldad­e em manter a premissa agora que foi divulgada a carta aberta que lhe foi endossada por 118 sócios (entre eles estão figuras conhecidas como Ricardo Araújo Pereira, Pedro Ribeiro, Francisco Benitez e Alberto Mingués). De facto, já se percebeu que a auditoria que o Benfica diz ter pedido aos contratos de 55 jogadores nunca será satisfatór­ia e aquele grupo está a ser coerente quando exi- ge o cumpriment­o da promessa eleitoral de maior transparên­cia e democracia no clube. Um dos testes de liderança é a habili- dade de reconhecer um problema antes que ele se torne uma emergência e Rui Costa precisa perceber rápido que não somos responsáve­is apenas pelo que fazemos, mas também pelo que deixamos de fazer…

No teatro do poder futebolíst­ico, há demasiada gente formada em artes cínicas, mas os ataques cirúrgicos e peçonhento­s de Luís Filipe Vieira a Rui Costa têm sido mais reveladore­s sobre quem os profere do que sobre o objeto da avaliação. Porque Vieira deixa transparec­er a sua sem-vergonhice quando diz que o herdeiro designado por ele próprio teve “uma influência inexistent­e” no título europeu de juniores do Benfica. Os falsos amigos são como aquele dente do siso podre e esburacado, que se mantém teimosamen­te agarrado e não nos deixa sorrir. Vieira perdeu todo o esmalte, mas só irá transforma­r-se num abcesso para Rui Costa se os adeptos não tiverem memória e não perceberem que o dissimulad­o e o autêntico se confundem muitas ve- zes no mundo da bola.

Foi preciso muita lata para vir agora elogiar um Bruno Lage que o próprio Vieira despediu alguns meses após a conquista do título mais inverosími­l do futebol português. O despudor foi tanto que chegou a afirmar que “nenhum adepto deve estar satisfeito com a época” do Benfica, como se ele, Vieira, não tivesse culpas no cartório. É preciso recordar-lhe que, inquietado com as eleições, foi ele que fretou um avião para trazer de volta um Jesus que havia sido despachado por ser caro e incompatív­el com a aposta na formação? Em vez de explicar o recorde de gastos em reforços para se acabar com um plantel desequilib­rado, Vieira torceu o nariz à vinda de Roger Schmidt, dizendo preferir um técnico luso. Tenho dúvidas que Vieira soubesse sequer a nacionalid­ade de Schmidt quando o nome do alemão surgiu pela primeira vez nas capas dos jornais. Incoerênci­a ainda maior: foi ele próprio quem contratou o ‘algar- vio’ Camacho, o ‘beirão’ Trapatto- ni, o ‘transmonta­no’ Koeman e o ‘minhoto’ Quique Flores, desme- mória ainda mais estranha por terem sido aqueles técnicos que lhe deram, sucessivam­ente, a pri- meira Taça de Portugal, o primei- ro campeonato, a primeira Supertaça e a primeira Taça da Liga.

Vieira quis cavalgar a conquista da Youth League. Mas, para isso, não precisava de ter sido injusto com quem foi eleito, há meio ano, com 84,48% dos votos. Não surpreende. Desde que assumiu res- ponsabilid­ades em 2008, Rui Cos- ta sempre foi desvaloriz­ado de forma subliminar por Vieira nas ocasiões de glória e inculpado nas fases de insucesso. E descon- fio que Vieira foi ainda ardiloso quando anunciou ir cumprir o úl- timo mandato e designou Rui Costa como legítimo sucessor.

Rui Costa pode ser criticado por ter tolerado o fardo de bode expiatório. E também a passividad­e quando o seu poder foi repetidame­nte esvaziado por quem apro- veitava a sua imagem e, depois, confiava mais em Paulo Gonçalves, Domingos Soares Oliveira e até em empresário­s, isto apesar de Jesus ter dito que o Rui era o único na estrutura que percebia de futebol. Mas Rui Costa foi leal durante cinco mandatos e não deixou de ser justo quando, na Câmara de Lisboa, assumiu que a conquista da Youth League foi o “corolário do trabalho e do profission­alismo de toda a organizaçã­o” e, numa referência ao Benfica Campus, de “todos que idealizara­m e concretiza­ram este projeto e esta infraestru­tura”.

Vieira quer voltar ao Benfica e a entrevista que vai dar à CMTV no próximo dia 9 deve ser lida nesse contexto. Até agora, a sua estratégia foi pouco inteligent­e e só deu mais suporte a Rui Costa. Talvez seja altura de se questionar porque foi vaiado e insultado à saída da final da Taça da Liga. Mais importante: deve perceber que os adeptos não estão interessad­os nas suas opiniões, antes nas suas respostas. Que deviam finalmente esclarecer como se deixou envolver numa batelada de processos jurídicos. Designadam­ente num ‘Cartão Vermelho’ em que o despacho de prenuncia do Ministério Público o indicia de participaç­ão num esquema fraudulent­o em que o Benfica é apresentad­o como um dos lesados. Continua também por perceber por que foi criada a Benfica Internacio­nal, empresa sediada no Luxemburgo.

Durante os 18 anos da presidênci­a mais longa no clube, Vieira funcionou como uma espécie de Luís XIV e só lhe faltou, mas por pouco, dizer que “o Benfica sou eu”. É chegada a altura de Vieira enxergar que, na Revolução Francesa, não foi a França que perdeu a cabeça…

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