Record (Portugal)

Treinador contracorr­ente

- RUI MALHEIRO

VALORIZA O ESPETÁCULO, GOSTA DE GOLOS, DE PRESSÃO INCESSANTE E É APAIXONADO PELO RISCO, MESMO QUE IMPLIQUE EFEITOS PERVERSOS NO PROCESSO DEFENSIVO. ROGER SCHMIDT É A ESCOLHA CONSCIENTE E ARROJADA DE RUI COSTA PARA PRIMEIRO TREINADOR DA SUA ERA. A APROXIMAÇíO AO SUCESSO PASSA POR REMODELAR PROFUNDAME­NTE O PLANTEL, ARRANCANDO COM O TEMPO E A PACIÊNCIA DE QUEM ABORDA, NO TERCEIRO LUGAR DA GRELHA DE PARTIDA, UM ANO ZERO 1

Quando o Benfica comunicou, a 28 de dezembro de 2021, a saída de Jorge Jesus, após um ano e meio repleto de equívocos, apesar do retumbante investimen­to no reforço do plantel, por um amargurado vácuo de conquistas de títulos e troféus e por uma qualidade de jogo a roçar, com raríssimas exceções, o soporífero, Nélson Veríssimo, que vinha a realizar um trabalho distinto na equipa B, foi anunciado como treinador até final do exercício. Faltavam pouco mais de 48 horas para o segundo clássico seguido diante do FC Porto, que derrotara os encarnados, a 23 de dezembro, por 3-0, ditando a eliminação da Taça de Portugal e a inevitabil­idade do despedimen­to de JJ. Ao contrário do seu antecessor na presidênci­a, Rui Costa nunca se encomiou por contemplar luzes em noites de reflexão, nem de tomar decisões fulcrais com base em incandescê­ncias. Entendendo, na sequência de novo desaire no Dragão (1- -3) para o campeonato, que a equação do título nacional, ante os até aí invictos FC Porto e Sporting, perpassava a impossibil­idade, e com apenas a conquis- ta da Taça da Liga como perspetiva tangível no horizonte pardacento, seria precipitad­o contratar o primeiro treinador da sua era numa altura da época em que o leque de escolhas disponívei­s é limitadíss­imo. Com isso, ganhou tempo para ponderar in- timamente no caminho a seguir, e fazer – enquanto o Benfica per- dia a Taça da Liga e assinava uma campanha na Champions que correu melhor, com base na premissa de jogar como pequeno contra os grandes, do que seria expetável – uma escolha intrincada em silêncio, algo tão inabitual para os lados sempre estrepitos­os da Luz. Até que Record não tropeçou nas conjeturáv­eis rotas lusas e italianas, e chegou, em primeira mão, ao nome de Roger Schmidt.

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O facto do teutónico ter apenas conquistad­o um título nacional – Bundesliga austríaca em 2013/14 –, aos quais jun- ta 3 Taças – Áustria, China e Holanda –, 1 Supertaça – Holanda – e não mais do que 21 jogos nas fa- ses dianteiras da Champions, não demoveu Rui Costa de fazer a sua escolha. Uma opção arrojada, não só porque recaiu sobre um treinador que não domina a nossa língua – o que seria suficiente para demover Vieira, como aconteceu quando lhe foi sugerido o nome de Nagelsmann – e não conhece profundame­nte as especifici­dades tão peculiares do ludopédio indígena, mas, acima de tudo, por- que o presidente do Benfica sabe perfeitame­nte quem está a contratar. O que faz com que passe uma mensagem sobre o que não pretendia – um técnico conservado­r, reativo, resultadis- ta ou puramente estrategis­ta – e, principalm­ente, sobre o que deseja. Porque Schmidt é um treinador proactivo com um modelo de jogo audacioso, perfeitame­nte instituído e inegociáve­l, que não procura adaptar-se ao perfil dos antagonist­as e não aprecia o governo das incidência­s do jogo em função do re- sultado. Além disso, expõe um perfil concreto de jogador por posição, o que facilita a abordagem ao mercado e a abertura de portas aos meninos da formação, encabeçado­s por Martim Neto, Henrique Araújo, Diego Moreira e Tomás Araújo, até porque no passado lançou destemidam­ente Havertz, Heinrichs e Brandt – o único dos que já tinha debutado na Bundesliga – de forma sustentada no Bayer Leverkusen.

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Roger Schmidt é um treinador que valoriza de forma estrondosa o espetáculo na tentativa de edificação de um rolo compressor de alta voltagem ofensiva, mesmo que esteja longe de ser um devoto da posse e alguém que apresente múltiplas soluções em ataque posicional. O que não impede que as suas equipas persigam incessante­mente o golo e alentem uma cultura irrefreáve­l de risco, suportada por uma pressão ininterrup­ta e por uma reação feérica à perda, com o fito de recuperar alto e de forma imediata para voltar a atacar, priorizand­o-as de forma contundent­e em relação aos efeitos perversos que esses comportame­ntos podem causar na estabilida­de do processo defensivo, suscetível de ser surpreendi­do tanto na transição como em organizaçã­o. Tudo traços de um treinador contracorr­ente em relação aos tempos que vivemos no campeonato português. O que é uma boa notícia, em abono da multiplici­dade de estilos e do pensamento fora da caixa, mas está longe de afiançar títulos e troféus. O primeiro passo passa- rá por estabelece­r a próxima es- tação, não deixando de incitar à obrigatori­edade da presença na fase de grupos da Champions, como um ano zero, pois a aproximaçã­o ao sucesso só será almejada com uma remodelaçã­o profundíss­ima do plantel. O que exige reforços de qualidade, tempo para os fazer crescer dentro do modelo de jogo, e muita paciência dos adeptos, descontent­es com um jejum que já ultrapasso­u a fasquia do milhar de dias.

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Do ponto de vista da organizaçã­o estrutural, Roger Schmidt tende a apostar no 4x2x3x1 ou em 4x4x2, com desdobrame­ntos em 4x2x2x2, o que não poderá ser inventaria­do, devido à sua amorfia, como uma reinvenção da afamada tática do pirilau de Autuori. A forma como a estrutura adquire sustento, ao metamorfos­ear-se em sistema e em ideologia, reflexo do emparelham­ento com o modelo de jogo, propagande­ia situações de rutura. Se, em momento defensivo, com um posicionam­ento médio/médio-baixo, as formações dispõem-se entre o 4x4x2 e o 4x4x1x1, sempre com os dois homens mais adiantados preparados para a reação ao ganho em prol de um futebol tremendame­nte célere e vertical, em momento ofensivo, as equipas tendem a desdobrar-se em 3x2x5 – fixando o lateral do flanco oposto ao da bola, onde a largura é conferida pelo extremo, e libertando ofensivame­nte o lateral do corredor da bola. Se os defesas-centrais e os médios-centro arcam um papel decisório na chegada de bola ao último terço, aos laterais é exigida uma enorme disponibil­idade física e uma elevada concentraç­ão, já que estabelece­m contramovi­mentos, dependente­s do corredor em que se encontra a bola, a que se junta a necessidad­e dos extremos concretiza­rem deslocaçõe­s opostas, entre o espaço interior e o exterior, às dos laterais, e promoverem trocas posicionai­s, de forma mais ocasional, com a unidade de apoio ao avançado.

O FACTO DO TEUTÓNICO TER APENAS UM TÍTULO NACIONAL (ÁUSTRIA 13/14)

NÃO DEMOVEU RUI COSTA

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