O iluminado de quem tudo se espera
CONJUGA TREINO E INSTINTO. DAVID NERES NUNCA É APANHADO EM SITUAÇÕES PARA AS QUAIS NÃO TENHA SOLUÇÃO. NÃO PRECISARÁ DE MILAGRES PARA SER UMA ESTRELA; BASTA QUE NÃO SE DESLUMBRE OU SE DISTRAIA
É um driblador e à finta está associado o engano, sem o qual o futebol não atinge a plenitude como expressão de arte. Quando aborda adversários, na tela imensa junto às linhas laterais, David Neres faz o que sempre fez: emite sinais equivocados sobre as intenções que transporta; aposta no bluff com o corpo todo, sabendo que o êxito da tramoia depende do grau de persuasão que atingir junto dos adversários. Para complicar leva a bola colada aos pés, de preferência o esquerdo, no flanco direito, no que costuma ser o início do processo diabólico de invenções inverosímeis, que criam o assombro e fazem levantar estádios. É um iluminado, de quem tudo se pode esperar.
Nessas curtas-metragens, algumas inesquecíveis, prevalece um pacto entre ele e a bola. Cumpridas todas as formalidades, e perante a oposição feroz de quem pretende travá-lo, o destino é fugirem juntos até à próxima barricada. Aos 25 anos, David Neres já se habituou a viver sob essa pressão intensa: deixou de pensar como herói solitário em busca de glória, moderou tiques exibicionistas e consolidou a convicção de que o futebol é um desporto coletivo, que nem sempre está preparado para aceitar ações individuais descontextualizadas da realidade.
Jogar junto às linhas não é para todos. Por talento e convicção, escolheu fazer vida nessas zonas periféricas, metáfora do que já sentiu na pele – ver-se longe da equipa, em contradição com as rígidas instruções do treinador, mas mais próximo dos adeptos que o adoram e pagam bilhete só para o ver. A longa experiência no futebol europeu, sem desvirtuar a essência do jogador nascido e formado em São Paulo, permitiu-lhe moderar o prazer mórbido de se enrolar com a bola; de entregar-se a exercícios chaplinescos de quem assume dissidência com a linha reta e encontrar paixão num futebol em que participem os companheiros, não como último recurso, mas como solução mais credível e se- gura para concretizar boas ideias. Numa equipa essencialmente virada para a frente falta só medir com total precisão o comportamento e o compromisso no apoio defensivo – e essa hora irá chegar fatalmente.
Em pouco tempo de Benfica,
David Neres já revelou um dos segredos para estar menos dependente da inspiração: é um extremo que automatizou um conjunto de ações com bola, sustentadas pela repetição de gestos e movimentos, recurso mecânico que lhe dá segurança para manter níveis aceitáveis de eficácia, mesmo longe do brilhantismo que, num dia bom, atinge sem esforço. Conjuga treino e instinto. A primeira mão da 3.ª pré-eliminatória da Champions, com o Midtjylland, foi exemplar: tinha o caminho fechado para dentro, de onde encontraria a situação ideal para executar com o pé esquerdo; como tal adiantou a bola para a linha de fundo e fez dois cruzamentos perfeitos com o pé direito para a cabeça de Gonçalo Ramos. Resultado: 2-0 para o Benfica.
Pelo que mostrou em seis semanas, Neres candidata-se a ser uma das grandes figuras da Liga. É um driblador que conjuga técnica e habilidade e não vive na dependência do estilo teatral com que limpa adversários da frente; acrescentou ao reportório a imperiosa valorização de eficácia; joga com a cintura e tem talento para gerir todos os elementos relacionados com a velocidade – é rápido, tem talento e domina os benefícios de aceleração, travagem e mudança de direção. A finta é limpa e imprevisível, com saída para qualquer dos lados, e nunca é apanhado em situações para as quais não tenha solução. Não precisará de milagres para ser uma estrela; basta que não se deslumbre ou se distraia.
PELO QUE JÁ MOSTROU EM SEIS SEMANAS CANDIDATA-SE A SER UMA DAS GRANDES FIGURAS DA LIGA