Record (Portugal)

Fernando Chalana

O GÉNIO DO POVO, COMO RECORD LHE CHAMOU, É TAMBÉM UM SÍMBOLO DO TEMPO DEMOCRÁTIC­O E DEIXA UM HALO DE ENCANTAMEN­TO SIMPLESMEN­TE ETERNO! O SEU FUTEBOL APROXIMOU-NOS DO MUNDO EVOLUÍDO

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çO cronómetro que contava o tempo da maldita guerra acelerava todos os anos por alturas do Natal. Naquele ano, porém, o cronómetro parou muito antes da quadra natalícia, quando o capitão Maia irrompeu por Lisboa, em cima de uma chaimite, com um megafone na mão a gritar que estava ali para nos fazer felizes. Não percebemos nada do que se estava a passar, a não ser que algo se estava a passar.

Nesse dia, os nossos pais não

nos deixaram sair para os campos do adro da igreja ou do castelo, o território da nossa guerra. A proibição era bizarra para quem passava os dias e as tardes a jogar à bola, a brincar aos índios e cowboys, a estragar os matraquilh­os do clube ou a apurar a arte das três tabelas. Para quem passava as tardes a fazer jogos de caricas e corridas de bicicletas no jardim da Fonte Férrea.

Pois o capitão Maia ficara-nos

na retina mas, aos poucos, foi-se dissipando. Passou a estar provisoria­mente arrumado na memória, à espera de uma conversa em condições. Tinham-nos dado algo de novo e havia que tirar partido. Férias intermináv­eis, escola a começos muito tardios. Uma conjugação privilegia­da para jogar de manhã à noite os Benfica/Sporting, daqueles de acabar-aos-dez-e-mudar-aos-cinco. Nada mais interessav­a do que fintar à Vítor Baptista, rematar à Jordão, desarmar como Humberto Coelho. Eu adorava o Vítor Bap- tista mas Chalana emergia no horizonte. Uma paixão avassa- ladora.

A poesia daquela finta, como

diria Pasolini, em que gingava como um marujo mal habituado a terra, sempre com a bola colada à bota, era uma poção mágica. Mostrava que tudo era possível, nesse Portugal ainda muito atrasado, pobre e longín- quo da Europa. Depois de Eusé- bio, Chalana era um virtuoso flanêur, o divino vagabundo que exibia o perfume e as delícias do futebol de rua na majes- tade das catedrais dessa religião laica que é o desporto-rei.

O futebol de Chalana aproximava-nos do mundo evoluído.

Aproximava-nos do triunfo e da felicidade. Da beleza, da emoção, da ilusão de ver um de nós a sair directamen­te do cam- po das escolas para a glória majestátic­a da Luz. De saltar as fasquias da estratific­ação social e económica deixadas pelo salazarism­o. Fernando Chalana é também um símbolo do tempo democrátic­o e deixa um halo de encantamen­to simplesmen­te eterno! O génio do povo, como ontem Record lhe chamou. Como o capitão Maia, também uma das figuras inesquecív­eis de um novo Portugal que o mundo começou a respeitar.

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