O Mundo é feito de mudança
UM MODELO MAIS OFENSIVO NÃO NASCE ESPONTANEAMENTE, PESE A QUALIDADE EXISTENTE
FERNANDO SANTOS SENTIU-SE OBRIGADO A REPENSAR O SEU IDEÁRIO, PERCEBENDO, FINALMENTE, QUE O CAMINHO QUE NOS GUIOU AO ÊXITO EM 2016 ESTAVA ESGOTADO E A ANIQUILAR TALENTO. A PROPOSTA MAIS OFENSIVA, QUE ABONOU UMA PRIMEIRA PARTE SOBERBA ANTE A NIGÉRIA, FOI REPLICADA FRENTE AO GANA. APESAR DO TRIUNFO, NÃO FOI TÃO BEM-SUCEDIDA, MAS ESTA MUDANÇA EXIGE TEMPO PARA SER CONSOLIDADA 1
A sucessão de malogros caseiros com a possibilidade de jogar para dois desfechos (vitória e empate), que ditou o fracasso no apuramento para as duas últimas fases finais da Liga das Nações e na qualificação direta para o Mundial’22, assim como as participações pífias no Mundial’18 e no Euro’20, forçaram Fernando Santos a refletir, nos últimos dois meses, sobre o caminho equivocado que estava a calcorrear. Além de perceber, de uma vez por todas, que o caminho para o êxito de 2016 não é replicável, importava travar o aniquilamento do talento incomensurável de uma das gerações mais prodigiosas do futebol luso. Senti, em Alvalade, ante a Nigéria, apesar das frangibilidades do antagonista, a vontade de descerrar um novo ciclo. O que sucedeu com a libertação e a harmonização do talento superlativo e subversivo que o Engenheiro tem à sua disposição, sem ter qualquer receio de arrogar proatividade e protagonismo com bola. A amostra, na etapa inicial, foi pungente, com o carrossel projetado por João Félix, Bernardo Silva, Bruno Fernandes e Otávio, que repetiram a titularidade ante o Gana, a permitir alinha- var uma das melhores primei- ras partes de uma era que já superou a fasquia dos 8 anos, saltando, com enorme facilidade, entre o 4x1x3x2 e o 4x2x3x1. O que deixou a Seleção mais próxima do galanteio pela bola e do apetite visceral pela nota artística, que espelham o emparelhar da qualida- de técnica, criatividade e imprevisibilidade, os verdadeiros traços distintivos da árvore genealógica do ludopédio indí- gena. Um caminho que não se traça em dois ou três dias de trabalho, nem em uma ou duas semanas, mas que poderá empubescer de treino para treino e de jogo para jogo. Importa perceber que um modelo de jogo ofensivo muito mais burilado com base em premissas coletivas não nasce espontaneamente, por mais qualidade individual que haja. O que é o caso. Só que nunca foi um padrão definido, e a maior parte dos jogadores nunca conjugaram o verbo associar, de forma tão arreigada, em conjunto. Como ficou patente quando Portugal se deparou com a muralha erigida pelo Gana, a partir de uma estrutura em 5x3x1x1 em momento defensivo, no debute no Mundial’22. Tudo isto é um processo que exige tempo e, principalmente, que não se desista ante as primeiras adversidades.
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A Seleção, frente a um rival encolhido, não teve qualquer prurido em assumir o jogo, procurando dominá-lo e controlá-lo no meio-campo ofensivo, mas sem produzir mudanças de ritmo, o que redundou numa circulação pouco célere e conjeturável. Se é certo que, com isso, se protegeu defensivamente, não perdendo a bola, o que impediu contragolpes indesejáveis dos ganeses, que concluíram a etapa inicial sem qualquer remate ao arco de Diogo Costa, faltou aos lusos uma maior belicosidade e imprevisibilidade ofensivas para chegar em condições favoráveis a zonas de finalização. O que aconteceu em duas situações: após um equívoco ganês numa saída e na sequência de uma bola parada. O posicionamento mais recuado de Bernardo, a arcar ações de construção, subtraiu-o de zonas de criação, e percebeu-se uma tendência excessiva para perscrutar o corredor esquerdo, atraindo o adversário, que nunca foi surpreendido com variações contundentes para o flanco oposto, capazes de desfraldar as arduidades na basculação. Depois, as trocas de bola foram feitas de pé para pé, o que inibiu a busca de passes de rutura para solicitações no espaço que pudessem surpreender um antagonista muito fechado e tremendamente agressivo defensivamente. Além disso, faltou profundidade aos laterais nacionais, como também a busca regular de situações de 1x1 que pudessem criar desequilíbrios.
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Na etapa complementar, o jogo foi mudando paulatinamente de fisionomia, e, em algumas situações, quase que se metamorfoseou numa sinuosa montanha russa. Os ganeses, através do engenho turbulento de Kudus, começaram a soltar-se, e a lesão de Otávio, que não esteve particularmente feliz, foi a porta de entrada de William no jogo, posicionando-se perto de Rúben Neves. O que permitiu libertar Bernardo para posições mais avançadas nas entrelinhas, e soltar Bruno Fernandes e João Félix, até aí intermitentes, para a criação. A circulação entre corredores – da direita para a esquerda –, a partir de uma construção gizada desde trás, seria o mote para a conquista do penálti, após um soberbo toque de calcanhar de Félix, transformado por Ronaldo no golo que lhe permitiu escrever mais um recorde: o de ser o único futebolista a rubricar tentos em cinco Mundiais. Só que, em desvantagem, o Gana surgiu mais afoito no capítulo ofensivo, e desferrou erros preocupantes na última linha lusa. Cancelo, ao ser atraído à largura, abriu uma cratera entre Rúben Dias e Danilo, soberbamente aproveitada por Kudus, lesto a aproveitar uma situação de 3x3 e a oferecer o empate a Andre Ayew. Foi o momento mais duro para a Seleção. Só que se Fernando Santos, ao invés de tantas outras situações, foi proativo, lançando Rafael Leão para o lugar de Rúben Neves, o que reorganizou a equipa em 4x3x3, Addo abdicou de Kudus e Andre Ayew com o fito de refrescar o ataque. O que acabou por partir a partida, permitindo que Portugal, em apenas dois minutos, desenhasse duas pungentes contratransições que valeram o 3-1. A primeira, definida por Félix, dando sequência a uma ligação entre Guerreiro (responsável pela recuperação), William e Bruno Fernandes, soberbo na rutura. A segunda, concretizada por um flamante e sorridente Leão, após recuperação de Félix, seguida de apoio frontal de Ronaldo, e de uma condução superlativa de Bruno Fernandes, que, em superioridade (4x3), soube fixar a última linha rival, e servir com enorme argúcia o extremo do AC Milan. O Engenheiro quis adormecer o jogo, mas o Gana renasceu com um tento de Bukari, em mais um lance em que Cancelo foi batido, e em que Danilo, fixo na bola, e Guerreiro, manifestamente atrasado, não souberam travar o cruzamento da esquerda de Baba Rahman. Por fim, em cima do último minuto de compensação, uma escorregadela de Iñaki Williams, feroz a aproveitar uma desatenção pueril de Diogo Costa numa reposição, permitiu a Rúben Dias e a Danilo impedirem um 3x3 que quase caiu do céu.
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