Musiala, Messi e o meu vexame
çO jogo corria apressadamen- te para o fim, mas eis que Musia- la e Leroy Sané confecionam uma jogada rápida e o obscuro Niclas Füllkrug surge como um relâmpago. Quando a bola saiu com violência do pé direito do panzer alemão e só parou no fundo da baliza de Simón, o meu braço direito emancipou-se e es- perneou com agressividade por cima da minha cabeça. Sempre pouco dado a estas reações instintivas, estranhei-me a mim próprio. E ainda mais acabrunhado fiquei quando descobri que um batalhão de espanhóis lotava as três primeiras mesas do bar do hotel. De facto, como é que alguém concebido em Miranda do Douro, medrado na Ré- gua e com sotaque portuense podia estar ali a torcer pelos teu- tónicos? Fiquei com a ideia de que até o gracioso e amestrado galgo sentado respeitosamente ao lado da sua dona (que está quase todos os dias na mesma mesa do canto, com uns volumosos auscultadores bluetooth nas orelhas ‘very british’) me mirava com pasmo e desapontamento. Ou era eu já a fantasiar, instiga- do pelas saudades da minha Carlota, uma jack russel bem mais traquina, mas que também fala docemente com os olhos.
Poderia legitimar o meu estranho e, insisto, inabitual compor- tamento com a história cinema- tográfica de Füllkrug. Numa seleção alemã em que alguns (não é o meu caso) apontam principalmente a falta de um Klinsmann, Bierhoff, Bobic ou até Klose, o abismo acabou por ser evitado à custa de um ponta de lança grandalhão, já com 29 anos, que ainda na época passada andava clandestino na segun- da divisão germânica e que só precisou de 13 minutos em campo para empatar o jogo, após substituir Müller. Bem, talvez não seja tanto assim, porque Füllkrug já havia tido uma passagem pela seleção de sub-20 e foi muito em resultado dos seus golos que o Werder Bremen regressou à Bundesliga. De resto, segue em segundo na lista de melhores marcadores (10 golos) e é considerado o avançado germânico no espaço aéreo. Mas não é comum ver um jogador com aquela idade e com mais jogos no escalão secundário do que no principal assumir as responsabilidades que, em condições normais, pertenceriam aos lesionados Werner e Nkunku.
Devo assim desmascarar-me:
eu queria muito que a Alemanha não perdesse o jogo. Porque acho mesmo que esta seleção voltou a ganhar com Flick a energia, a agressividade sem bola e a qualidade que lhe começou a faltar nos últimos tempos de Löw. Talvez Kroos tenha renunciado cedo demais e as soluções nas laterais defensivas não estão à altura de outros tempos. Mas precipitaram-se aqueles que vergastaram a Alemanha e lhe fizeram as exéquias após a derrota frente ao Japão. Não perceberam a excelência da prestação no primeiro tempo e também que o futebol se presta aos acidentes e às injustiças.
O empate com a Espanha permite que as duas equipas acariciem os ‘oitavos’ e foi isso que mais me agradou e fez perder a postura. É verdade que esta Espanha, com Busquets e os seus génios imberbes, convida à ilusão e esteve mais tempo por cima. Mas o jogo acabou por ser um duelo de espelhos entre as duas equipas que mais me enchem as medidas, sem desprimor para o Brasil e para a França, que até podem ter mais armas e favoritismo. Para mim, o Mundial não seria o mesmo sem Neuer, Kimmich, Gnabry, Leroy Sané e Havertz. Mas seria principalmente doloroso sem esse demónio com pés de bailarina de 19 anos: Musiala diverte-nos e contagia com o seu futebol de habilidade, elasticidade, velocidade e verticalidade.
A Espanha deixou sobreviver a
Alemanha e ainda bem. E, já agora, por muito que a Argentina tenha começado por ser surpreendida pela estimulante Arábia Saudita, também gostei que a normalidade fosse reposta frente ao México. Messi ainda é dos que nos aglutina a fé, principalmente agora que parece ter ganho um ascendente que não se via na seleção desde Maradona.