A montanha russa indígena
A SELEÇÃO VENCEU O GRUPO H, MESMO PERDENDO DIANTE DA COREIA DO SUL. FERNANDO SANTOS, QUE PRODUZIU MODIFICAÇÕES PROFUNDAS APÓS DOIS TRIUNFOS, FALOU EM SINAL DE ALERTA. SÓ QUE A FELIZ RENOVAÇÃO DO SEU IDEÁRIO TEM SIDO ATRAPALHADA POR AREIAS NUMA ENGRENAGEM AINDA INSUFICIENTEMENTE TRABALHADA. O QUE NOS CONDUZ A PRESTAÇÕES INTERMITENTES, CHEIAS DE ALTOS E BAIXOS
1 Com a passagem aos ‘oitavos’ afiançada ao segundo jogo, Fernando Santos produziu modificações profundas no onze que encarou a Coreia do Sul. Importava, contudo, não olvidar a exibição com altos e indesejáveis baixos ante o Uruguai, que, à semelhança do Gana, se apresentou numa estrutura que se procurava desdobrar entre o 5x3x2 e o 3x5x2. Se é certo que a Seleção arrogou o controlo do jogo na maior parte do tempo, faltou obsequiar mais propósito à posse, o que embaraçou a entrada no bloco rival – nem sempre compacto – e a chegada com belicosidade a zonas de finalização. Um aspeto que contribuiu para a inexistência de remates enquadrados na etapa inicial, onde a única oportunidade pertenceu a Bentancur, num lance em que, após Cavani ganhar um duelo a Rúben Neves, conquistou o meio-campo ofensivo em condução, obrigando Diogo Costa a uma intervenção decisiva. O golo de Bruno Fernandes, aos 54 minutos, após um cruzamento-remate – em que se manifestou crucial a associação à esquerda entre Bernardo, Guerreiro (incisivo a assaltar a profundidade e a arrastar Varela) e Bruno, além do movimento dissuasor de Ronaldo, sagaz a aproveitar o desalinhamento da última linha rival (por responsabilidade do lateral-esquerdo luso), a importunar Rochet – metamorfoseou o rosto da partida. O Uruguai soltou-se das amarras defensivas e quis ser incisi- vo ofensivamente, mudando a estrutura para 4x4x2, e Portugal ficou mais frágil, sobretudo a partir do momento em que Santos espantou ao abdicar de Rúben Neves para lançar Rafael Leão, assumindo o 4x3x3, que visava o assalto pungente à profundidade. Só que se perdeu a estabilidade e a organização defensiva coriá
DIANTE DA COREIA, RONALDO REALIZOU UMA DAS SUAS PIORES PRESTAÇÕES NA SELEÇÃO
cea tão caras ao Engenheiro, as- sim como a imprescindível capacidade para ter bola, que poderia ser conferida por Vitinha, e o jogo partiu-se com extrema facilidade, o que beneficiou o assalto uruguaio ao último terço. Valeu-nos Diogo Costa, o poste, e a posterior reorganização em 4x1x4x1. O mote para a chegada, ante um oponente de- sesperado, ao 2-0 final.
2 Ante a Coreia do Sul, a ideia seria a de manter a estrutura híbrida entre o 4x1x3x2 e o 4x2x3x1. No entanto, acabou por ser em 4x2x3x1, à se- melhança do que sucedera ante o Uruguai, que a Seleção se apresentou. Se Diogo Costa manteve a titularidade na baliza, nas laterais surgiram Dalot, incisivo a brindar largura e a atacar a profundidade, uma no- vidade venturosa à direita, o que conduziu o intermitente Cancelo, até para gerir a condição física de Guerreiro, para a esquerda. Sem o lesionado Danilo e com Rúben Dias com um cartão amarelo, a dupla de defe- sas-centrais foi composta por Pepe e António Silva, que, com uma serenidade glaciar típica de um veterano, se tornou no futebolista luso mais jovem a participar numa fase final de um Mundial. No meio-campo, Rúben Neves, em risco de suspensão, foi utilizado pelo terceiro jogo consecutivo como médio-defensivo, o que pode ter gerado surpresa. Uma decisão engenhosa de Santos, pois con- duziu à poupança de William, que, sem qualquer admoestação no bornal, não corre o risco de falhar os ‘oitavos’ e os ‘quartos’. Na fase inaugural da parti- da, o cerebral Vitinha surgiu, tal como William frente aos charruas, em zonas próximas às de Rúben Neves, o que guiou Matheus Nunes para o papel de médio-ofensivo, onde se sentiu, pela falta de espaços, um peixe fora de água. O que acabaria por orientar uma inversão do triângulo do meio-campo, esta- bilizando a estrutura em 4x1x4x1/4x3x3, com Vitinha e Matheus a arcarem o papel de interiores, um aspeto que seria decisivo para que Portugal crescesse exibicionalmente na etapa final da primeira parte, ao caucionar, sobretudo por ação do médio do PSG, mais ca- pacidade para ter bola e celeridade na circulação. A partir dos corredores laterais despontaram Ricardo Horta, solícito a buscar diagonais do corredor direito em direção a zonas de fi- nalização, e João Mário, que indagou movimentos da esquerda para zonas de criação no cor- redor central, no apoio a Cristiano Ronaldo, a referência ofensiva que passou ao lado da rotação, e realizou uma das suas piores prestações ao servi- ço da Seleção, demasiado consumido em irmanar, ao seu quinto Mundial, o número de golos que Eusébio assinou em 1966. Assim, Bruno Fernandes, o jogador mais decisivo ante Gana e Uruguai, e João Félix, clara mais-valia no renovado ideário do Engenheiro, também em risco de falharem os ‘oitavos’ por já terem visto um cartão amarelo, além de Bernardo Silva, superlativo ante o rival sul-americano, foram poupados.
3 Um soberbo passe longo de Pepe a fomentar uma desmarcação profunda de Dalot, sagaz a perscrutar a inexistência de trabalho defensivo por parte de Son e a oferecer um passe para zona de finalização, no corredor direito, foi o mote para um tento inaugural assinado precocemente por Ricardo Horta. Só que o momento que podia ter sido a epígrafe para uma exibição consistente não teve sequência. Os processos de construção – com uma saída a 3, com Rúben Neves entre os centrais, contra apenas um rival, o que nos retirou uma unidade de uma linha superior, bastante intermitente – e de criação enfermaram de previsibilidade, esbarrando na consistência da organização defensiva sul-coreana, sagaz a fechar o espaço entre as diferentes linhas e a bloquear o corredor central. Faltou, ao invés do que sucedeu no tento inaugural, sagacidade no passe, no controlo do jogo através da posse, na criação de desequilíbrios no ‘1x1’ e no remate. Depois, com bola, os comandados de Paulo Bento souberam ser afoitos, o que lhes permitiu chegar à igualdade na sequência de um pontapé de canto, e, na etapa complementar, foram inteligentes a apresentarem-se mais expetantes, posicionando-se num bloco bem mais baixo, o que os tornou mais incisivos na indagação de contragolpes. Apesar de terem arrogado, na fase final do encontro, mais riscos no capítulo ofensivo, desdobrando-se num 4x2x4, seria no desenho de um espetacular contra-ataque – na sequência de um pontapé de canto a favor de Portugal – conduzido por Son, ante a apatia indígena na transição defensiva, que surgiria o 1-2 final, com Hee-Chan Hwang, saído do banco, a dar sequência vitoriosa a um passe de rutura do craque do Tottenham.