O cavaleiro sem obstáculos
Sem queixas ou lamentos. Ressurgiu focado em cumprir o sonho de representar Portugal no Concurso Completo de Equitação nos Jogos Olímpicos de Paris’2024... e não quer ser mero participante
Em junho de 2020, Francisco Stilwell entrou no consultório do médico que o acompanhava e disse que tinha decidido avançar para a amputação da perna esquerda. Ciente de que estava a escolher o caminho mais drástico e de que a decisão era irreversível, mas com a convicção de que estava a solucionar um problema, seguiu em frente. Aos 27 anos quis deixar as constantes idas ao bloco operatório e as temporadas passadas em hospitais, para ganhar um novo fôlego num percurso despido de lamentos ou vitimização e repleto de resiliência e paixão pelo hipismo, desporto – arte, defenderão muitos – que o acompanha desde que tem memória. Cavaleiro profissional, ‘Kiko’ encara a época que agora começa com um objetivo em mente. No verão de 2024 quer estar em Paris para disputar o Concurso Completo de Equitação dos próximos Jogos Olímpicos. A data não poderia ser melhor, até porque marca o centenário da primeira medalha Olímpica conseguida por Portugal. Adivinhe-se… no hipismo e em Paris. Para lá chegar, planeia fazer mais de uma dezena de competições, entre os maiores nomes da modalidade, a contar para o ranking de qualificação. A começar por uma viagem a Itália, onde está o cavalo com que espera garantir o apuramento para Paris. Depois, segue-se Barcelona, onde ficará sediado durante grande parte da jornada que se avizinha de forma a esbater a condição periférica do nosso país e tornar as viagens para as provas um pouco mais económicas. Antes de tudo isso, arranjou tempo para receber
Record no Hipódromo do Campo Grande, em Lisboa, onde nos falou sobre a longa história da família no mundo do Hipismo, a carreira que começou aos 9 anos por ordem do pai e que, entretanto, já conta com mais de 20 anos e incontáveis quilómetros a cavalgar entre campeonatos nacionais e internacionais.
E se dúvidas houvesse sobre a ambição deste cavaleiro, nada melhor do que a promessa que o próprio pretende levar para os Jogos de Paris e que dão o mote para o percurso de resiliência de Francisco Stilwell: “Pus na cabeça que ia voltar à competição poucos meses depois de amputar uma perna, por isso não me passa pela cabeça que não possa ir aos Jogos. Objetivo? Não valia a pena ir só se fosse só para participar. Posso conseguir, ou não, mas vou para, pelo menos, tentar ganhar.”
Entrar no Hipódromo do Campo Grande, plantado entre a congestionada Segunda Circular e a não menos viva Universidade de Lisboa, é como entrar numa pequena aldeia escondida bem no centro da azáfama da cidade. É lá que, desde os anos 30, está instalada a Sociedade Hípica Portuguesa e onde podemos entrar no mundo de Francisco Stilwell.
À hora combinada, aparece com a descontração de quem está a receber convidados na própria casa e apressa-se a indicar o caminho para o “sítio mais interessante” para servir de pano de fundo à entrevista. Sentados entre as ‘boxes’ onde estão instalados alguns dos cavalos e éguas com que treina e compete, a primeira pergunta não poderia ser mais óbvia. “Afinal, como é que tudo isto começou?” E Kiko nem precisa de puxar pela cabeça para responder: “Cresci literalmente no meio de cavalos. A minha família cria cavalos há mais de cem anos, a minha irmã [Isabel Stilwell] também foi cavaleira profissional. Desde que me lembro só queria estar com os cavalos. A ligação ao hipismo veio de forma natural.” Francisco nasceu com espinha bífida, uma anomalia congénita do sistema nervoso que pode causar paralisia dos membros inferiores. “Descobriram logo quando nasci e sabiam que ia causar uma deformação e falta de sensibilidade no pé esquerdo”, explica. Uma operação em Londres, com apenas um ano, tratou a doença, mas os problemas no pé começaram a aparecer com os primeiros passos. “Fazia muitas feridas, muitas úlceras de pressão porque, como não tinha sensibilidade, podia andar o dia todo em cima de uma ferida. Qualquer coisa que tivesse dentro do sapato fazia ferida e acabava por infetar.” A partir daí começou a dura jornada que faz com que conte “mais operações do que anos de vida”, como nos informa sem o mínimo de pudor: “Fiz várias cirurgias de correção do pé, operações de limpeza e retalho, tentamos endireitar com tendões. Depois as infeções começaram a ser mais graves, tive uma osteomielite [infeção no osso], que é uma doença que fica adormecida no osso e fazia as infeções começar de fora para dentro. Como não sentia nada, só notava quando a infeção chegava à parte exterior do pé.”
Competir é a segunda paixão
Com exceção a alguns pequenos privilégios, como ir à praia, os problemas no pé nunca o impediram de fazer o que queria. E o que sempre quis foi a carreira como cavaleiro profissional. “A minha mãe dizia-me sempre que tinha de fazer pelo menos 12.º ano. Nunca disse que eu teria de abdicar dos cavalos, mas avisava que tinha de ter outras opções, se calhar ir para a faculdade. Não aconteceu porque no desporto de alta competição é difícil conciliar as duas coisas da melhor forma e a paixão pelo hipismo sempre foi mais forte,” confessa. Aos 30 anos tem feito por fazer valer a opção. É atleta profissional, com quase 21 anos de carreira e o sonho olímpico em linha de vista. Até porque, além dos cavalos, Francisco tem outra grande paixão. “Adoro a competição. Vencer os outros atletas e superar-me. Se não fosse isso... continuava a montar, porque quem está ligado aos cavalos tem sempre esse ‘bicho’, mas preciso desses objetivos para me focar a 100%”. Ainda assim, não deixa de participar no negócio da família: “Acabo por discutir com o meu pai ou com os meus tios sobre que cruzamentos fazer, que cavalos utilizar e esse tipo de coisas. É sempre bom ter uma família ligada à criação.”*
“CRESCI NO MEIO DOS CAVALOS. A MINHA MÃE DIZIA-ME PARA TER OUTRAS OPÇÕES, MAS A PAIXÃO PELO HIPISMO FOI MAIS FORTE.”