A chave mestra do título
O MOMENTO EM QUE RUI COSTA DEFINIU O PERFIL DO TREINADOR FOI A GÉNESE DE UM PLANO BEM ELABORADO (E CARO)
NÃO DEVE DESCURAR-SE A IMPORTÂNCIA DO REGRESSO DE LOURENÇO COELHO À CHEFIA DO FUTEBOL
Não é fácil eleger o jogador mais determinante na conquista do título. João Mário, Rafa e Neres (sem contar com Enzo), foram primordiais na fase preambular da época, seguidos por Gonçalo Ramos. Mas os dois primeiros perderem fulgor e o brasileiro foi vítima da vontade do técnico de dar maior equilíbrio à equipa, enquanto Ramos se foi tornando menos profícuo na finalização. Vlachodimos cumpriu, António Silva fez uma dupla de sucesso com Otamendi e foi a grande revelação, sem desprimor para a frescura que João Neves trouxe no período crítico. Mas os dois jo- gadores com o rendimento alto e uniforme foram Grimaldo e Aursnes, um norueguês multifuncional que parece ser natural de Vila Nova da Barquinha e que foi o melhor achado de Schmidt.
O 38º título do Benfica comprova que um bom sonho bem planeado está sempre mais próximo da glória. Dito de outra forma, a génese da conquista do campeonato, após 1470 dias sem qualquer troféu, foi o momento em que Rui Costa definiu o perfil do novo treinador. Porque, também no futebol, o difícil torna-se mais fácil quando existe um plano engenhoso.
A escolha de Roger Schmidt não foi pacífica. Acabado de ser destronado da cadeira presidencial, Luís Filipe Vieira criticou a contratação de um forasteiro. E vários analistas torceram o nariz e questionaram o palmarés do alemão, como se o título austríaco (Red Bull Sazburg), as taças ganhas nos Países Baixos, China e Áustria, bem como o terceiro lugar na Bundesliga (Bayer Leverkusen) e os segundos postos nas liga chinesa (Beijin Guoan) e holandesa (PSV) o desqualificassem para treinar um ‘grande’ português em prolongado jejum dos títulos.
Por já acompanhar a sua carreira desde Salzburgo, ousei escrever neste espaço, logo após Record dar como iminente a sua chegada à Luz, que Schmidt iria ter um impacto transformador no Benfica e no próprio futebol português próximo do que Eriks- son teve no início da década de 80. Não estava obviamente certo do seu sucesso imediato, mas aventurei-me a dizer que o Benfica iria entrar numa nova era. Fi-lo por saber que Schmidt era um dos mais competentes correligionários da nova escola alemã que adoptou o ‘gegenpressing’, mas não só por isso. É verdade que aquela valência não lhe dava um estatuto único de modernidade no futebol nacional, até porque o modelo de jogo que Sérgio Conceição decretou no FC Porto tem muitas similitudes. Mas também levei em conta que além da boa qualidade de treino, a chegada de Schmidt iria assegurar um futebol selvagem e com adrenalina que se correlaciona bem com a história do Benfica. Estava ainda ciente de que a aposta num estrangeiro relativamente conceituado iria garantir ao técnico a liderança e a margem de manobra que muitas vezes escasseia aos ‘santos da casa’.
O projecto de Rui Costa teve tan- to de vitorioso como de instantâneo, mas as coisas mais esplêndidas no mundo da bola nunca são feitas por uma única pessoa. E, nesse âmbito, não deve ser descu- rada a importância do regresso de Lourenço Coelho para a chefia sossegada do departamento de futebol. Foi a reunião harmoniosa deste triunvirato que permitiu esquematizar o plano, a começar logo pela definição do plantel. Ciente da importância de ganhar o título logo no ano da sua emancipação presidencial, Rui Costa autorizou o investimento avulta
do em reforços (que ultrapassou os 50M€, sem contar com as verbas variáveis). E, excluindo princi- palmente o médio defensivo San- garé, Schmidt foi mimoseado com a maioria das contratações que pediu. Isso não lhe reduz o mérito de ter percebido a utilidade de dois jogadores que andavam emprestados, como eram os casos de Florentino e Chiquinho, que acabou por resolver bem a saída de Enzo Fernández (Rui Costa resistiu até ao limite, mas não vender o argentino por aque- le dinheiro teria sido quase gestão danosa). E muito menos a afoiteza revelada no lançamento de António Silva e João Neves, que funcionou como uma brisa refrescante quando o Benfica teve de sair da ‘crise dos 13 dias’ (derrotas caseiras com o FC Porto, Inter de Milão e em Chaves). Acresce o lampejo tido na colocação de Gonçalo Ramos como referência mais avançada, a par do aconchego terno do treinador a João Mário e a Rafa, que assim tiveram as épocas mais frutíferas das suas carreiras.
Schmidt não é um treinador perfeito, designadamente no plano estratégico, e ninguém pode retirar a Sérgio Conceição o direito de achar que o FC Porto foi a melhor equipa (pese embora nos recordemos das suas palavras elogiosas ao Benfica quando este seguia viçoso e supostamente imparável na frente). Aos portistas deve ser tributado o mérito da redução do atraso de 10 para 2 pontos. Outro clube sem a cultura ‘dragoniana’ e, principalmente, sem um técnico como Conceição teria resignado e acabado a uma distância ainda maior. Mas nem essa competência rara invalida que o Benfica tenha sido a melhor equipa (provam-no todos os dados estatísticos) e a que apresentou o futebol mais espumoso da liga. E não cairiam os parentes na lama a Conceição se o admitisse.