Record (Portugal)

“CRESCI ENTRE O EUSÉBIO E O ELVIS”

JORGE ANDRADE

- FILIPE ALEXANDRE DIAS

Jorge Andrade entrou no Confession­ário Record e abriu o livro das suas histórias e aventuras pelo mundo do futebol. Uma saga que começa em São Tomé, passa pelos reis do futebol português e do rock, vai da Reboleira ao Porto, ganha raízes na Corunha, é bem portuguesa e tem riso lá dentro. Muito riso. Porque o Jorge é assim mesmo: divertido

Quem é o Jorge Andrade?

JORGE ANDRADE - Uma pessoa objetiva. Sou prático, sem rodeios, simples. Mas às vezes complico...

Ⓡ Complica como assim?...

JA - Com as mulheres [risos]. Tenho três em casa. Mas com tudo o que é desporto e trabalho, sou sempre simples.

Ⓡ Nasceu rodeado por futebol. Como foi?

JA - Sim, o meu pai gostava de mostrar as medalhas que tinha ganho enquanto jogador e os amigos dele eram malta do futebol. A equipa da 2.ª divisão do Estrela da Amadora ia toda à minha casa. O Matine, o Gerúsio... Ia tudo lá para o convívio. Eu e os meus irmãos tínhamos de ir ao supermerca­do buscar um reforço de bebidas.

Ⓡ O Estrela da Amadora era o vizinho do lado...

JA - Sim, morava a 100 metros do estádio. Era só rebolar pela Reboleira. Estávamos sempre a bater às portas do estádio e íamos jogando por ali. Eu e quase todo o meu grupo de amigos acabámos por jogar no Estrela.

Ⓡ Essa relação vem de África. Como começou?

JA - O meu pai jogava futebol em São Tomé, para onde foi muito novo com a família de Cabo Verde. Trabalhava­m na roça, na extração de cacau, que dava para o café, para o chocolate... O meu pai jogava no Santana, clube da terra. Até jogou para a Taça de Portugal, em Angola. Depois chegou a Portugal com duas cartas, uma do Belenenses, outra do Atlético. Apareceu primeiro o Atlético e ele foi para os juniores. Fez carreira, a conciliar com o trabalho no Hotel Sheraton. Era barman. Depois jogou no Borbense cinco anos. Mas aquilo era só falar de Eusébio, Pelé, Maradona... Do Feyenoord, que tinha o Gullit. Claro, depois há o Gullit no Milan com o Rijkaard e o Van Basten. Lá em casa era futebol e música.

Ⓡ Quais as suas referência­s?

JA - Consumíamo­s tudo o que fosse Eusébio. Ainda por cima tínhamos a possibilid­ade de estar com o Eusébio. Era Eusébio, Eusébio. A 100%. Na música, o meu pai ouvia tudo. Do Elvis Presley tinha os álbuns todos. Havia muita música africana, música cantada francesa... E country? Nisso o meu pai era uma máquina. Mas era mais Elvis. Cresci entre o Eusébio e o Elvis.

Ⓡ E lá em casa dos Andrade o coração batia por que clube?

JA - O meu pai era sportingui­sta. Os irmãos estão divididos entre Benfica e Sporting...

Ⓡ O ambiente era de guerrilha?

JA - Não, era tranquilo.

E o Jorge?... Tem clube?

JA - Para ser sincero, não sei de que clube sou... Torço por quem me deu de comer e tenho de começar pelo Estrela da Almadora. Torço pelo FC Porto, torço pelo Deportivo da Corunha e pela Seleção. O que me deixa mais zangado é a Seleção. Sou mais crítico. Por exemplo, neste Mundial, o que nós, portuguese­s, fizemos ao Cristiano Ronaldo foi uma chacina. Fui contra. ‘Matámos o Ronaldo. Enquanto do outro lado, eles fizeram um Deus que não existe, que é o Messi. Fizeram-no ganhar o Mundial quase sem transpirar... Voltando atrás, defendo o FC Porto, mas com cabeça. Mas já dei os parabéns ao Sporting e ao Benfica quando foram campeões nacionais. Eu acho que temos de ser sempre racionais.

Ⓡ Voltando a casa dos Andrade e ao seu cresciment­o, qual foi a relação com os livros?

JA - Fácil, porque o meu pai era super exigente. Fui até ao 12.º ano e fui um aluno médio, sem dificuldad­e. Tive a sorte de não jogar na formação da Seleção nessa altura. Colegas de escola que tive como o Filipe Martins, hoje treinador do Casa Pia, faltava um mês e meio, por causa dos torneios. Só existia um plano, que era ser futebolist­a, porque estávamos todos envolvidos naquela dinâmica do Estrela, que então crescia rápido, do pelado ao relvado até ao estádio, com o bingo a suportar toda aquela estrutura.

Ⓡ A transição para profission­al foi pacífica?

JA - Completame­nte. Toda a gente nos conhecia. Havia uma proximidad­e muito grande com os jogadores, os jornalista­s viam os treinos, havia um café que era o Caravela, à frente do estádio, onde toda a gente lanchava... Lá dentro o clube profission­alizava-se com técnicos com João Alves e Fernando Santos, e estar no Estrela era praticamen­te estar em Lisboa, ao lado de Benfica e Sporting. Mas antes tive ali uma etapa complicada...

Ⓡ Na formação?

JA - Sim, aos 15 anos fui dispensado e fui jogar para o Massamá [hoje Real Sport Clube]. Aí percebi que tinha de ser a sério. Disse a mim próprio que nunca mais um treinador me dispensari­a.

“O FERNANDO SANTOS DE MANHÃ NÃO FUNCIONA. ANDEI UM ANO À ESPERA QUE ELE ME DISSESSE ‘ BOM DIA’”

“FUI ASSINAR PELO BENFICA E FIQUEI ENCRAVADO EM TRÊS ELEVADORES. DEPOIS ENCRAVOU-SE A TRANSFERÊN­CIA...”

Ⓡ Portanto, não admitia ser dispensado...

JA - E resultou! Nunca mais aconteceu. Também o físico ajudou, ‘né?... Ganhei mais uns quilinhos e mais altura. Coincidiu para os seniores e a transição foi muito fácil já novamente no Estrela.

Ⓡ Sempre como defesa-central? JA - A minha formação é de central. Também joguei como médio-centro, com o míster Miguel Quaresma nos juniores, e mais tarde até treinei como lateral direito e esquerdo, já com Fernando Santos. Ⓡ No seu início profission­al encontra Fernando Santos e Jorge Jesus...

JA - Estilos bem diferentes. Eu já estava preparado para o Jesus, porque o Miguel Quaresma já era muito parecido na forma de treinar. Com o Fernando Santos não, porque ele de manhã tinha um comportame­nto a que eu não estava habituado. Ele não funciona de manhã. Raramente falava, então aos mais novos, nem “bom dia” dizia. Eu era ali acarinhado todos os dias e com ele... nada. Foram dias e dias a passar pelo Fernando Santos a dizer “bom dia” e nunca lhe ouvi resposta. Um dia não lhe dei os bons dias e ele: “Então, ó miúdo, não se diz bom dia???” Eu tinha estado à espera do “bom dia” dele o ano todo. Mas depois surpreende­u-me. Fiz um exame de matemática e ele até se ofereceu para me dar explicaçõe­s. Espetacula­r. Mas conheci melhor o Fernando Santos depois na segunda etapa, no FC Porto.

Ⓡ E o Jorge Jesus?

JA - Quando ele chegou, todos estavam intrigados para saber como ele iria mexer na equipa. Já tinha tudo muito bem organizado e esquematiz­ado. A malta sabia que ele era muito bom, mas queria vê-lo em ação. Surpreende­u-me porque ia ao pormenor. Eram os espaços em campo, os treinos sem bola que para ele eram muito importante­s, organizaçã­o do espaço, a bola parada ofensiva, defensiva... Explicava o que cada adversário fazia.

Ⓡ E a nível pessoal?

JA - Um jogador com personalid­ade mais fraca, não aguentava. Era todo o ano a levar com o míster Jesus... Os nossos laterais,

“PARA SER SINCERO, NÃO SEI DE QUE CLUBE SOU” NTREVISTA JORGE ANDRADE

Rui Neves e Kenedy, nem gostavam de jogar do lado do banco para não o ouvirem... [risos]

Ⓡ Desatinou com ele?

JA - Uma vez respondi-lhe num jogo-treino contra o Odivelas. Os centrais eram eu e o Raul Oliveira e ele só refilava comigo. Tirou-me do treino, mas resolveu-se a seguir. Ajudou-me e foi gratifican­te trabalhar com ele. Quando vou para o FC Porto é ele quem diz que seriam eu e mais dez.

Ⓡ Mas antes ainda assinou pelo Benfica...

JA - Sim, os meus empresário­s eram José Veiga e Alexandre Pinto da Costa e a ideia era levarem-me para o Benfica. Fui ter com Vale e Azevedo num início de época e seria efetivo em dezembro. Nesse dia, desde o restaurant­e onde fomos até à Luz ficámos encravados em três elevadores. Depois encravou a transferên­cia. Quando fui assinar o Vale e Azevedo só falava dos barcos que tinha e eu parecia que nem estava ali. O Benfica não teve capacidade financeira para honrar o compromiss­o, foi para lá o Miguel e desabafei com o Tiago, guarda-redes emprestado pelo Sporting ao Estrela. E ele disse que ia falar com o empresário dele, o Jorge Manuel Mendes. Depois disseram-me para ir a Cascais falar com pessoas interessad­as em contratare­m-me. Seriam da Udinese... Chego lá e está Pinto da Costa à porta. Perguntou-me se eu queria ir para o Porto e eu perguntei onde é que se assinava.

Ⓡ Saiu da zona de conforto...

JA - Saí de um sítio onde ia a pé para o treino... Mas foi espetacula­r. Tudo organizado. Fui muito bem tratado e nem uma lâmpada nos podia faltar no Porto.

Ⓡ Ali quem não entra portista, sai portista, certo?

JA - A cidade envolve. Há carinho, mas se o jogador pisar o risco são os primeiros a dizer que devemos ir para casa. Era uma sensação meio estranha. Eram como nossos pais.

Ⓡ Como é que se passa pelo FC Porto nessa altura e não se é campeão?

JA - O Boavista nessa época [2000/01] fez uma época extraordin­ária e foi campeão. No meu segundo e último ano de FC Porto apanhámos o Sporting de João Pinto e Jardel. Ganhámos a Taça ao Marítimo [2000/01], sai o Fernando Santos e vem o Octávio Machado.

Ⓡ E a seguir ainda apanha José Mourinho. Como foi?

JA - Dava para perceber que aquilo iria ser diferente. Ele vinha preparado com tudo, com a escola Barcelona. A formação dele era universitá­ria, mas tinha as vivências de campo que o pai lhe passou e a parte complement­ar do treino. O que se faz na atualidade em termos de treino é muito baseado naquilo que ele já fazia naquela altura.

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“DISSERAM-ME QUE ESTAVAM EM CASCAIS INTERESSAD­OS EM MIM. SERIA A UDINESE... CHEGUEI E TINHA PINTO DA COSTA À PORTA”

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