“CRESCI ENTRE O EUSÉBIO E O ELVIS”
JORGE ANDRADE
Jorge Andrade entrou no Confessionário Record e abriu o livro das suas histórias e aventuras pelo mundo do futebol. Uma saga que começa em São Tomé, passa pelos reis do futebol português e do rock, vai da Reboleira ao Porto, ganha raízes na Corunha, é bem portuguesa e tem riso lá dentro. Muito riso. Porque o Jorge é assim mesmo: divertido
Quem é o Jorge Andrade?
JORGE ANDRADE - Uma pessoa objetiva. Sou prático, sem rodeios, simples. Mas às vezes complico...
Ⓡ Complica como assim?...
JA - Com as mulheres [risos]. Tenho três em casa. Mas com tudo o que é desporto e trabalho, sou sempre simples.
Ⓡ Nasceu rodeado por futebol. Como foi?
JA - Sim, o meu pai gostava de mostrar as medalhas que tinha ganho enquanto jogador e os amigos dele eram malta do futebol. A equipa da 2.ª divisão do Estrela da Amadora ia toda à minha casa. O Matine, o Gerúsio... Ia tudo lá para o convívio. Eu e os meus irmãos tínhamos de ir ao supermercado buscar um reforço de bebidas.
Ⓡ O Estrela da Amadora era o vizinho do lado...
JA - Sim, morava a 100 metros do estádio. Era só rebolar pela Reboleira. Estávamos sempre a bater às portas do estádio e íamos jogando por ali. Eu e quase todo o meu grupo de amigos acabámos por jogar no Estrela.
Ⓡ Essa relação vem de África. Como começou?
JA - O meu pai jogava futebol em São Tomé, para onde foi muito novo com a família de Cabo Verde. Trabalhavam na roça, na extração de cacau, que dava para o café, para o chocolate... O meu pai jogava no Santana, clube da terra. Até jogou para a Taça de Portugal, em Angola. Depois chegou a Portugal com duas cartas, uma do Belenenses, outra do Atlético. Apareceu primeiro o Atlético e ele foi para os juniores. Fez carreira, a conciliar com o trabalho no Hotel Sheraton. Era barman. Depois jogou no Borbense cinco anos. Mas aquilo era só falar de Eusébio, Pelé, Maradona... Do Feyenoord, que tinha o Gullit. Claro, depois há o Gullit no Milan com o Rijkaard e o Van Basten. Lá em casa era futebol e música.
Ⓡ Quais as suas referências?
JA - Consumíamos tudo o que fosse Eusébio. Ainda por cima tínhamos a possibilidade de estar com o Eusébio. Era Eusébio, Eusébio. A 100%. Na música, o meu pai ouvia tudo. Do Elvis Presley tinha os álbuns todos. Havia muita música africana, música cantada francesa... E country? Nisso o meu pai era uma máquina. Mas era mais Elvis. Cresci entre o Eusébio e o Elvis.
Ⓡ E lá em casa dos Andrade o coração batia por que clube?
JA - O meu pai era sportinguista. Os irmãos estão divididos entre Benfica e Sporting...
Ⓡ O ambiente era de guerrilha?
JA - Não, era tranquilo.
E o Jorge?... Tem clube?
JA - Para ser sincero, não sei de que clube sou... Torço por quem me deu de comer e tenho de começar pelo Estrela da Almadora. Torço pelo FC Porto, torço pelo Deportivo da Corunha e pela Seleção. O que me deixa mais zangado é a Seleção. Sou mais crítico. Por exemplo, neste Mundial, o que nós, portugueses, fizemos ao Cristiano Ronaldo foi uma chacina. Fui contra. ‘Matámos o Ronaldo. Enquanto do outro lado, eles fizeram um Deus que não existe, que é o Messi. Fizeram-no ganhar o Mundial quase sem transpirar... Voltando atrás, defendo o FC Porto, mas com cabeça. Mas já dei os parabéns ao Sporting e ao Benfica quando foram campeões nacionais. Eu acho que temos de ser sempre racionais.
Ⓡ Voltando a casa dos Andrade e ao seu crescimento, qual foi a relação com os livros?
JA - Fácil, porque o meu pai era super exigente. Fui até ao 12.º ano e fui um aluno médio, sem dificuldade. Tive a sorte de não jogar na formação da Seleção nessa altura. Colegas de escola que tive como o Filipe Martins, hoje treinador do Casa Pia, faltava um mês e meio, por causa dos torneios. Só existia um plano, que era ser futebolista, porque estávamos todos envolvidos naquela dinâmica do Estrela, que então crescia rápido, do pelado ao relvado até ao estádio, com o bingo a suportar toda aquela estrutura.
Ⓡ A transição para profissional foi pacífica?
JA - Completamente. Toda a gente nos conhecia. Havia uma proximidade muito grande com os jogadores, os jornalistas viam os treinos, havia um café que era o Caravela, à frente do estádio, onde toda a gente lanchava... Lá dentro o clube profissionalizava-se com técnicos com João Alves e Fernando Santos, e estar no Estrela era praticamente estar em Lisboa, ao lado de Benfica e Sporting. Mas antes tive ali uma etapa complicada...
Ⓡ Na formação?
JA - Sim, aos 15 anos fui dispensado e fui jogar para o Massamá [hoje Real Sport Clube]. Aí percebi que tinha de ser a sério. Disse a mim próprio que nunca mais um treinador me dispensaria.
“O FERNANDO SANTOS DE MANHÃ NÃO FUNCIONA. ANDEI UM ANO À ESPERA QUE ELE ME DISSESSE ‘ BOM DIA’”
“FUI ASSINAR PELO BENFICA E FIQUEI ENCRAVADO EM TRÊS ELEVADORES. DEPOIS ENCRAVOU-SE A TRANSFERÊNCIA...”
Ⓡ Portanto, não admitia ser dispensado...
JA - E resultou! Nunca mais aconteceu. Também o físico ajudou, ‘né?... Ganhei mais uns quilinhos e mais altura. Coincidiu para os seniores e a transição foi muito fácil já novamente no Estrela.
Ⓡ Sempre como defesa-central? JA - A minha formação é de central. Também joguei como médio-centro, com o míster Miguel Quaresma nos juniores, e mais tarde até treinei como lateral direito e esquerdo, já com Fernando Santos. Ⓡ No seu início profissional encontra Fernando Santos e Jorge Jesus...
JA - Estilos bem diferentes. Eu já estava preparado para o Jesus, porque o Miguel Quaresma já era muito parecido na forma de treinar. Com o Fernando Santos não, porque ele de manhã tinha um comportamento a que eu não estava habituado. Ele não funciona de manhã. Raramente falava, então aos mais novos, nem “bom dia” dizia. Eu era ali acarinhado todos os dias e com ele... nada. Foram dias e dias a passar pelo Fernando Santos a dizer “bom dia” e nunca lhe ouvi resposta. Um dia não lhe dei os bons dias e ele: “Então, ó miúdo, não se diz bom dia???” Eu tinha estado à espera do “bom dia” dele o ano todo. Mas depois surpreendeu-me. Fiz um exame de matemática e ele até se ofereceu para me dar explicações. Espetacular. Mas conheci melhor o Fernando Santos depois na segunda etapa, no FC Porto.
Ⓡ E o Jorge Jesus?
JA - Quando ele chegou, todos estavam intrigados para saber como ele iria mexer na equipa. Já tinha tudo muito bem organizado e esquematizado. A malta sabia que ele era muito bom, mas queria vê-lo em ação. Surpreendeu-me porque ia ao pormenor. Eram os espaços em campo, os treinos sem bola que para ele eram muito importantes, organização do espaço, a bola parada ofensiva, defensiva... Explicava o que cada adversário fazia.
Ⓡ E a nível pessoal?
JA - Um jogador com personalidade mais fraca, não aguentava. Era todo o ano a levar com o míster Jesus... Os nossos laterais,
“PARA SER SINCERO, NÃO SEI DE QUE CLUBE SOU” NTREVISTA JORGE ANDRADE
Rui Neves e Kenedy, nem gostavam de jogar do lado do banco para não o ouvirem... [risos]
Ⓡ Desatinou com ele?
JA - Uma vez respondi-lhe num jogo-treino contra o Odivelas. Os centrais eram eu e o Raul Oliveira e ele só refilava comigo. Tirou-me do treino, mas resolveu-se a seguir. Ajudou-me e foi gratificante trabalhar com ele. Quando vou para o FC Porto é ele quem diz que seriam eu e mais dez.
Ⓡ Mas antes ainda assinou pelo Benfica...
JA - Sim, os meus empresários eram José Veiga e Alexandre Pinto da Costa e a ideia era levarem-me para o Benfica. Fui ter com Vale e Azevedo num início de época e seria efetivo em dezembro. Nesse dia, desde o restaurante onde fomos até à Luz ficámos encravados em três elevadores. Depois encravou a transferência. Quando fui assinar o Vale e Azevedo só falava dos barcos que tinha e eu parecia que nem estava ali. O Benfica não teve capacidade financeira para honrar o compromisso, foi para lá o Miguel e desabafei com o Tiago, guarda-redes emprestado pelo Sporting ao Estrela. E ele disse que ia falar com o empresário dele, o Jorge Manuel Mendes. Depois disseram-me para ir a Cascais falar com pessoas interessadas em contratarem-me. Seriam da Udinese... Chego lá e está Pinto da Costa à porta. Perguntou-me se eu queria ir para o Porto e eu perguntei onde é que se assinava.
Ⓡ Saiu da zona de conforto...
JA - Saí de um sítio onde ia a pé para o treino... Mas foi espetacular. Tudo organizado. Fui muito bem tratado e nem uma lâmpada nos podia faltar no Porto.
Ⓡ Ali quem não entra portista, sai portista, certo?
JA - A cidade envolve. Há carinho, mas se o jogador pisar o risco são os primeiros a dizer que devemos ir para casa. Era uma sensação meio estranha. Eram como nossos pais.
Ⓡ Como é que se passa pelo FC Porto nessa altura e não se é campeão?
JA - O Boavista nessa época [2000/01] fez uma época extraordinária e foi campeão. No meu segundo e último ano de FC Porto apanhámos o Sporting de João Pinto e Jardel. Ganhámos a Taça ao Marítimo [2000/01], sai o Fernando Santos e vem o Octávio Machado.
Ⓡ E a seguir ainda apanha José Mourinho. Como foi?
JA - Dava para perceber que aquilo iria ser diferente. Ele vinha preparado com tudo, com a escola Barcelona. A formação dele era universitária, mas tinha as vivências de campo que o pai lhe passou e a parte complementar do treino. O que se faz na atualidade em termos de treino é muito baseado naquilo que ele já fazia naquela altura.
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“DISSERAM-ME QUE ESTAVAM EM CASCAIS INTERESSADOS EM MIM. SERIA A UDINESE... CHEGUEI E TINHA PINTO DA COSTA À PORTA”