Record (Portugal)

Um certo conceito de felicidade

QUANDO O OURO JÁ É MUITO, NALGUNS CASOS DE MAIS, HÁ HOMENS QUE VALORIZAM O MIMO. NÃO SÃO MELHORES NEM PIORES DOS QUE OS OUTROS, AQUELES QUE SE DEIXAM SEDUZIR PELOS MILHÕES DAS ARÁBIAS. SÃO APENAS DIFERENTES. COMO DI MARÍA

- RUI DIAS

çQuando a bola deixa de ser o centro do jogo, o que acontece por ciclos mais ou menos espaçados no tempo, o futebol premeia os funcionári­os com sentido tático e dá-lhes protagonis­mo desproporc­ional, desde logo superior aos artistas que alteram os guiões estabeleci­dos com inesperado­s golpes de imaginação. A fantasia confronta-se com o previsível, os mágicos entregam-se a duelos com homens de presença constante, que não cometem erros de posicionam­ento e de entrada aos lances. Os mais criativos ficam condenados à melancolia de lutas desiguais, na eterna busca de se tornarem decisivos com ações imprevisív­eis.

Di María está de volta ao Benfica

e as dúvidas são as habituais, mesmo apresentan­do-se com números impression­antes nas últimas oito épocas, entre PSG (7) e Juventus (1) – 375 jogos, 58 golos e 173 assistênci­as. Sustentado em 30 títulos, incluindo o de campeão do Mundo, em 2022, deve preparar-se para os comentário­s dos pragmático­s do costume, que só entendem o jogo a partir de músculo, obstinação e entrega, instrument­os mais primários, mas também mais fiáveis do que o sempre suspeito e volátil talento.

O lutador obediente oferece matéria concreta

e dá confiança nos momentos de incerteza. O argentino suscita sensações diferentes, está noutra galáxia, mas não imune a ser visto como incógnita fora de controlo. Sim, no futebol jogam 11, obrigados a articular a intervençã­o, formar uma equipa e defender uma ideia grande; mas o desarme, a finta, o passe e o golo são obra de um homem só.

Di María impunha-se pelo estilo diabólico,

articulado, de longas e solitárias cavalgadas, com fintas curtas e perfeita gestão da velocidade; era extraordin­ário na conceção dessas aventuras fascinante­s, mesmo que nem sempre tivessem o final que mereciam. O tempo apetrechou-o com sentido estratégic­o, concedeu-lhe impression­ante qualidade na definição dos lances e, mesmo que re- vele poder de explosão mais moderado, evidencia hoje conhecimen­to absoluto sobre as chaves coletivas do jogo. Pode ser menos espetacula­r mas mantém intactos os princípios de desequilib­rador fatal – 45 minutos em Basileia foram elucidativ­os, com um golo e participaç­ão em outros dois.

Era um puro-sangue

com confiança insolente nas suas qualidades, tornou-se um craque universal quando consolidou a quinta velocidade: a mental. Aos 35 anos, volta à casa de partida depois de construir império grandioso em potências do futebol mundial (Real Madrid, Manchester United, PSG, Juventus e seleção argentina), nas quais confirmou que a beleza existe, a maior eficácia é ter a bola, ensaiar coisas raras, libertar os medos e cruzar-se com a inspiração, estimuland­o o prazer de criar e ser feliz. Tornou-se bandeira de esperança e força motriz de um sonho que empolga a família encarnada.

Quando veio para Portugal, em 2007,

Di María era a semente de uma vocação esplendoro­sa; prepara-se,16 anos depois, para oferecer as últimas gotas de um talento exuberante, que atingiu patamares de surpreende­nte divindade. Não é de estranhar que o direito dos clubes portuguese­s se resuma ao aproveitam­ento do talento sublime que a juventude antecipava e à veterania de um génio enriquecid­o por uma vida passada ao mais alto nível do futebol mundial.

Di María tomou uma decisão emocional

para a reta final da carreira, impulsiona­da por particular conceito de felicidade, como cidadão e chefe de família – prova de que os sentimento­s podem causar mais impacto do que as ideias. Quando o ouro já é mui- to, nalguns casos de mais, há homens que valorizam o mimo. Não são melhores nem piores dos que os outros, que se deixam seduzir pelos milhões da Arábia. São apenas diferentes.

O ARGENTINO TORNOU-SE

A FORÇA MOTRIZ DE UM SONHO QUE EMPOLGA A FAMÍLIA ENCARNADA

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Entre 2010 e 2014 represento­u o Real Madrid, ao lado de Cristia- no Ronaldo. Uma dupla que funcionou sempre em pleno
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No PSG, dos 27 aos 34 anos (7 épocas) , tem números estratosfé­ricos: 335 jogos, 50 golos e 96 assistênci­as. Impression­ante!
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Em seleção dominada pela pre- sença de Messi, Di María contribuiu para o título mundial e a conquista da Copa América
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