Um certo conceito de felicidade
QUANDO O OURO JÁ É MUITO, NALGUNS CASOS DE MAIS, HÁ HOMENS QUE VALORIZAM O MIMO. NÃO SÃO MELHORES NEM PIORES DOS QUE OS OUTROS, AQUELES QUE SE DEIXAM SEDUZIR PELOS MILHÕES DAS ARÁBIAS. SÃO APENAS DIFERENTES. COMO DI MARÍA
çQuando a bola deixa de ser o centro do jogo, o que acontece por ciclos mais ou menos espaçados no tempo, o futebol premeia os funcionários com sentido tático e dá-lhes protagonismo desproporcional, desde logo superior aos artistas que alteram os guiões estabelecidos com inesperados golpes de imaginação. A fantasia confronta-se com o previsível, os mágicos entregam-se a duelos com homens de presença constante, que não cometem erros de posicionamento e de entrada aos lances. Os mais criativos ficam condenados à melancolia de lutas desiguais, na eterna busca de se tornarem decisivos com ações imprevisíveis.
Di María está de volta ao Benfica
e as dúvidas são as habituais, mesmo apresentando-se com números impressionantes nas últimas oito épocas, entre PSG (7) e Juventus (1) – 375 jogos, 58 golos e 173 assistências. Sustentado em 30 títulos, incluindo o de campeão do Mundo, em 2022, deve preparar-se para os comentários dos pragmáticos do costume, que só entendem o jogo a partir de músculo, obstinação e entrega, instrumentos mais primários, mas também mais fiáveis do que o sempre suspeito e volátil talento.
O lutador obediente oferece matéria concreta
e dá confiança nos momentos de incerteza. O argentino suscita sensações diferentes, está noutra galáxia, mas não imune a ser visto como incógnita fora de controlo. Sim, no futebol jogam 11, obrigados a articular a intervenção, formar uma equipa e defender uma ideia grande; mas o desarme, a finta, o passe e o golo são obra de um homem só.
Di María impunha-se pelo estilo diabólico,
articulado, de longas e solitárias cavalgadas, com fintas curtas e perfeita gestão da velocidade; era extraordinário na conceção dessas aventuras fascinantes, mesmo que nem sempre tivessem o final que mereciam. O tempo apetrechou-o com sentido estratégico, concedeu-lhe impressionante qualidade na definição dos lances e, mesmo que re- vele poder de explosão mais moderado, evidencia hoje conhecimento absoluto sobre as chaves coletivas do jogo. Pode ser menos espetacular mas mantém intactos os princípios de desequilibrador fatal – 45 minutos em Basileia foram elucidativos, com um golo e participação em outros dois.
Era um puro-sangue
com confiança insolente nas suas qualidades, tornou-se um craque universal quando consolidou a quinta velocidade: a mental. Aos 35 anos, volta à casa de partida depois de construir império grandioso em potências do futebol mundial (Real Madrid, Manchester United, PSG, Juventus e seleção argentina), nas quais confirmou que a beleza existe, a maior eficácia é ter a bola, ensaiar coisas raras, libertar os medos e cruzar-se com a inspiração, estimulando o prazer de criar e ser feliz. Tornou-se bandeira de esperança e força motriz de um sonho que empolga a família encarnada.
Quando veio para Portugal, em 2007,
Di María era a semente de uma vocação esplendorosa; prepara-se,16 anos depois, para oferecer as últimas gotas de um talento exuberante, que atingiu patamares de surpreendente divindade. Não é de estranhar que o direito dos clubes portugueses se resuma ao aproveitamento do talento sublime que a juventude antecipava e à veterania de um génio enriquecido por uma vida passada ao mais alto nível do futebol mundial.
Di María tomou uma decisão emocional
para a reta final da carreira, impulsionada por particular conceito de felicidade, como cidadão e chefe de família – prova de que os sentimentos podem causar mais impacto do que as ideias. Quando o ouro já é mui- to, nalguns casos de mais, há homens que valorizam o mimo. Não são melhores nem piores dos que os outros, que se deixam seduzir pelos milhões da Arábia. São apenas diferentes.
O ARGENTINO TORNOU-SE
A FORÇA MOTRIZ DE UM SONHO QUE EMPOLGA A FAMÍLIA ENCARNADA